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Crônicas da cidade

SER PAULISTANO É CORRER O RISCO DE VER UMA CRACOLÂNDIA EXPLODIR EM NÓS

RICARDO LÍSIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

No ano passado, tive três endereços em São Paulo. Em janeiro, a feira mais perto ficava na Vila Madalena. Durante o mês de julho, eu ia comer pastel nos Jardins, onde os feirantes falam baixo. Passei o natal, ansioso para saber se conseguiria terminar a São Silvestre, na Saúde.

Aqui a colônia japonesa toma um ótimo caldo de cana. Se você acordar bem cedo, vai cruzar com os travestis saindo do trabalho na avenida Indianópolis. Alameda Lorena, um negócio desses é impossível. A Vila Madalena acharia a "Ramona" o máximo, mas ela não curte rastafári e roupa descolada.

Mudei igual a São Paulo: sem parar. O trânsito é ruim nos três bairros. Na Vila, os descolados andam devagar porque estão curtindo uma viagem. O pessoal bem sucedido dos Jardins tem 30 multas em seis meses, mas sabe que vai dar um jeito. Cuidado na Saúde: o dono do carro importado está nervoso porque pegou uma "Ramona" logo que escureceu, mas ninguém pode ver. Parar no farol seria muita exposição.

Os mendigos também variam. Se você viu um na Vila Madalena, ainda não se acostumou. Esse aí é um modernete, pateta! Nos Jardins moram as culturetes: maridos artistas que são um sucesso. Na Saúde, a Ramona é uma periguete indo trabalhar.

Não cresci em nenhum desses três bairros, mas em Artur Alvim, na zona leste. Estão querendo mandar os noias da cracolândia para a periferia.

Eles não vão: os grupos de extermínio matam mesmo. A feira é animada e as duas da tarde o pessoal da favela pega a salada do jantar. O trânsito também é sossegado. Uma vez atropelaram uma garotinha e o povo linchou o motorista.

Mudei muito, mas descobri São Paulo em agosto do ano passado, quando me machuquei muito na esquina da Paulista com a Pamplona. Então soube onde realmente estou. Você pode chorar desesperado na frente do Masp.

Talvez achem que é uma instalação. Parecia que eu estava tendo alucinações, com meu corpo cortado, mas as pessoas não queriam saber.

Ser paulistano é correr o risco de ver uma cracolândia explodir dentro da gente.

RICARDO LÍSIAS é escritor, autor dos romances "Cobertor de Estrelas", "Duas Praças" e "O Livro dos Mandarins"

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SÃO PAULO PRECISA ACABAR COM A NOSTALGIA OU ELA ACABA COM SÃO PAULO

CHICO MATTOSO

ESPECIAL PARA A FOLHA

Costumo ter certa aversão à nostalgia. Irmã do melodrama, prima do clichê, madrinha da poesia barata e da filosofia de botequim, ela normalmente reflete uma espécie de miopia às avessas, uma incapacidade de olhar em volta e admitir que as coisas são como são. O nostálgico é um pouco como aqueles cachorros que ficam latindo pro mar, na esperança de que as ondas fujam correndo.

Mas isso não se aplica a tudo. Vejamos o exemplo do paulistano. O paulistano é dependente da nostalgia. Tirem-nos o passado, e vagaremos por aí como zumbis, à procura de algo em que nos agarrar, alguma coisa imutável e constante, que nos dê uma ilusão qualquer de eternidade. É uma necessidade fisiológica. Em São Paulo, a gente sente nostalgia até do ano que passou.

O tempo em que se jogava bola na rua; o tempo em que a Vila Madalena era um protetorado de hippies e malucões; o tempo em que a Berrini não existia; o tempo em que o copo de chope não custava mais caro que o litro da gasolina. O cérebro do paulistano é um amontoado de casas demolidas, bairros desfigurados, bares extintos, hábitos abandonados -uma série, enfim, de realidades interditadas pela passagem do tempo, dos tratores e da vontade de fazer um troquinho.

De que São Paulo sentiremos falta daqui a 20 ou 30 anos? Eu não faço a menor ideia. Imagino, e gostaria muito de estar errado, que a cidade seguirá devorando a si mesma, deixando-se levar por soluções cosméticas, trocando planejamento por conveniência, enchendo a própria cara de botox arquitetônicos, como uma Donatella Versace do urbanismo -e, ao final, sentindo uma saudade mais angustiada de si.

Não sei o que seria pior em 2042: ver que São Paulo já estava arruinada 30 anos antes ou, ao contrário, sentir saudades do tempo em que se levava duas horas -imagina, rapaz, que coisa maravilhosa!- para ir da região central à zona leste da cidade.

Alguma coisa precisa acontecer. Ou São Paulo acaba com a nostalgia, ou a nostalgia acaba com São Paulo.

Escritor, CHICO MATTOSO publicou os romances "Longe de Ramiro" e "Nunca Vai Embora", editado em 2011 pela Companhia das Letras

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