São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 1999



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  COM 10 MILHÕES DE VÍTIMAS, O CONFLITO CONCENTRA AS CARACTERÍSTICAS QUE MARCARIAM O SÉCULO 20: MASSACRES, ÓDIOS RACIAIS E USO DA TECNOLOGIA PARA ACELERAR A MATANÇA

Morte em massa inaugura o século | Espírito da época


Morte em massa inaugura o século

RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha

O verdadeiro começo do século 20 foi em 1914. Foi quando começou a Primeira Guerra Mundial, um conflito que teve em grande escala muito daquilo que caracterizaria o resto do século: massacres, ódio racial, uso de avanços da ciência e tecnologia para matar mais gente com maior rapidez.
“A Primeira Guerra Mundial foi um conflito trágico e desnecessário”, escreveu o historiador John Keegan em um recente livro sobre o conflito. Foi desnecessário porque a sequência de eventos que levou à guerra poderia ter sido quebrada a qualquer momento nas cinco semanas de crise antes dos primeiros tiros _bastaria haver “prudência ou boa vontade” entre os governantes e diplomatas.
E foi trágico pelos seus resultados imediatos. Cerca de 10 milhões de mortos _além de ter “destruído a otimista e benevolente cultura do continente europeu”, deixando um legado de rancor e ódio racial tão intenso, continua Keegan, que para entender as causas da Segunda Guerra é preciso estudar a Primeira.
A sequência de eventos começou com o famoso assassinato do herdeiro do trono austríaco, o arquiduque Francisco Ferdinando, em Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina, a 28 de junho de 1914. Os países começam a mobilizar suas forças. Austríacos atacam sérvios, russos ameaçam austríacos, alemães rosnam para russos, franceses apóiam russos, alemães invadem a Bélgica, britânicos apóiam belgas, e a política de alianças foi arrastando um por um os países europeus ao conflito.
Se apenas um homem pudesse ser responsabilizado pela Primeira Guerra, um concorrente sério ao título seria um que morreu antes dela começar _o chefe do Estado-Maior germânico, conde Alfred von Schlieffen (1833-1913).
Para quase todas as potências européias, a mobilização do exército era um passo importante para a guerra, mas não significava necessariamente que ela seria inevitável, disse o historiador A. J. P. Taylor. “Os alemães, porém, combinaram mobilização e guerra. Neste sentido, Schlieffen, chefe do Estado-Maior Alemão de 1892 até 1906, embora morto, foi o verdadeiro autor da Primeira Guerra Mundial. ‘Mobilização igual a guerra’ foi idéia sua. Em 1914 sua mão morta automaticamente apertou o gatilho”, disse Taylor.
Foi uma guerra da era da produção em massa. Fuzis, canhões, munição, tudo era produzido em quantidades assombrosas. Para o ataque na região do rio Somme em 1916, os britânicos armazenaram 2,96 milhões de granadas explosivas de artilharia. Os avanços tecnológicos também moldaram a luta, de modo que os próprios generais não conseguiram se adaptar aos novos tempos.
Outro autor que escreveu sobre a guerra, John Terraine, lembrou que os generais de então constituíam uma geração de líderes militares velhos e acostumados com a tranquila era vitoriana e seus processos lentos de mudança técnica e social. De repente tiveram de fazer face a um momento “em que nunca antes ou depois tanta inovação foi concentrada em um período tão curto de tempo”.
Foi, lembra Terraine, a primeira guerra da aviação; dos submarinos, que revolucionaram a guerra naval; do motor de combustão interna; do telégrafo sem fio; da artilharia em massa; da guerra química, com gases venenosos.
O mês inicial, agosto de 1914, foi o momento fundamental da guerra. Os alemães tinham que lutar contra inimigos em duas frentes _anglo-franceses a oeste, russos a leste. Tentaram pôr o mais perigoso fora de combate primeiro.
O maior exército da história até então se abateu contra a França e a Bélgica: marcharam 1,5 milhão de alemães, superioridade de 3 para 2 em relação aos aliados.
Mesmo com forças inferiores a leste, os alemães impuseram uma fragorosa derrota aos russos em Tannenberg. Foi o primeiro dos grandes fracassos militares russos, que levariam diretamente à revolução soviética de 1917.
Os alemães foram barrados em duas batalhas principais em 1914, Marne e Ypres. Depois a frente se solidificou. Foi cavada uma gigantesca linha de trincheiras que começava no mar do Norte e terminava na fronteira suíça. Milhões de homens guarneciam essa linha que pouco mudou até 1918.

Tecnologia e velhos generais
Metralhadoras e arame farpado impediam o progresso dos soldados. “A metralhadora completou o contraste entre a velocidade com que os homens podiam chegar ao campo de batalha por ferrovia, e a lentidão com que se moviam uma vez lá. De fato, eles não se moviam de jeito nenhum. As linhas opostas se congelaram, ficaram sólidas. Os generais de ambos os lados olharam para essas linhas impotentemente e sem compreensão. E ficaram olhando por quase quatro anos”, nota Taylor.
Os saldos das batalhas eram poucas centenas de metros, quando muito alguns quilômetros de terreno, tomado ao inimigo à custa de milhares de mortos e feridos.
Foi o caso em 1916 de duas notórias batalhas de “atrito”, no jargão militar. Em Verdun, alemães e franceses duelaram por um terreno sem grande significação militar. A batalha, a maior da guerra, foi indecisa, mas não antes de os dois lados terem mais de 700 mil mortos e feridos. Na batalha do Somme foi a vez de os britânicos sofrerem o mesmo processo.
“Foi uma grande máquina de moer carne dignificada com o nome de batalha”, disse o historiador John Macdonald.
Dada a imobilidade do campo de batalha e a não-utilização de bombardeios por aviões contra cidades, a Primeira Guerra foi uma das raras neste século em que morreram mais militares do que civis. E algumas faixas etárias sofreram mais, tanto que no pós-guerra se falava de uma “geração perdida”. Dos alemães nascidos entre 1892 e 1895, que tinham entre 19 e 22 anos quando começou a guerra, entre 35% e 37% foram mortos. Dos 16 milhões de alemães nascidos entre 1870 e 1899, quase todos serviram nas Forças Armadas, e 13% foram mortos.
Para sair do impasse das trincheiras os britânicos inventaram o tanque (o nome era uma maneira de despistar os alemães, como se fossem tanques de água sendo desenvolvidos para os russos).
O líder britânico Winston Churchill era um entusiasta dos tanques. Para ele, eles eram a solução do impasse _ “isso teria sido feito se apenas os generais não tivessem ficado contentes em lutar contra balas de metralhadora com os peitos de homens galantes e achar que estavam conduzindo uma guerra”.
Uma frase memorável foi dita pelo estadista francês Georges Clemenceau _“a guerra é séria demais para ser deixada aos generais”. O historiador A.J.P. Taylor complementou: “A experiência demonstrou também que era séria demais para ser deixada aos estadistas”.

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