São Paulo, domingo, 02 de março de 2008

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A fuga das cortes

Exílio da família real portuguesa foi precedido por iniciativas similares de Carlos Manuel 4º, da Sardenha, e Fernando 1º, das Duas Sicílias

LAURA DE MELLO E SOUZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A casa de Bragança não foi a primeira nem a única dinastia a fugir com sua corte em virtude dos avanços de Napoleão Bonaparte. Antes que o militar brilhante se celebrizasse e viesse a se tornar imperador, mas já no contexto de convulsão do Antigo Regime, Luís 16 e Maria Antonieta, como se sabe, tentaram passar a fronteira, mas acabaram presos em Varennes.
Talvez resida nessa fuga malograda o "mito fundador" das que vieram depois, mas é bom lembrar que, dias após a queda da Bastilha, um dos irmãos do rei da França, o conde de Artois -e futuro Carlos 10º- partia para Turim, terra de seu sogro, o rei da Sardenha, Vítor Amadeu 3º de Savóia, e lá se estabelecia com um simulacro de corte, alegre, despreocupada, inconseqüente e um tanto escandalosa.
O sogro ficou pisando em ovos e, mesmo depois que Artois partiu, procurou, como Portugal e outras monarquias européias secundárias, manter-se o mais neutro possível ante o conflito que ganhava a Europa.
Não conseguiu: teve de lutar com os aliados, contra a pátria francesa e, quando o norte da Itália se tornou o palco das façanhas militares do Exército revolucionário, foi dobrando a cabeça, cedendo à ocupação cada vez mais visível do seu ducado do Piemonte, o filé mignon da monarquia sarda, que tinha o título na ilha mediterrânica, mas a riqueza, o prestígio e a tradição na terra continental.
Luís 16 e Maria Antonieta foram executados, o pânico se espalhou entre a realeza da Europa, Vitor Amadeu morreu e foi sucedido por Carlos Manuel 4º, fraco e perplexo, casado com uma das irmãs do Bourbon decapitado, Maria Clotilde, cabeça de estadista em pele de beata. A 9 de dezembro de 1798, rei, rainha, irmãos, cunhados -a alta nobreza- deixavam Turim às cinco horas da manhã sob neve abundante, as rodas das carruagens despencando pelas ribanceiras, vendo-se na contingência de pernoitar em lugares impensáveis para uma casa tão antiga, que, na sua sede e nos arredores, contava com vários palácios deslumbrantes para passar temporadas.

Capital desconhecida
O destino era Cagliari, capital da Sardenha, onde nunca duque nenhum havia pisado antes, apesar de serem os reis da ilha desde 1720, em decorrência das ratificações do Tratado de Utrecht. Percalços incontáveis impediram o embarque da corte até 24 de fevereiro de 1799, em Livorno.
Os oito dias de travessia foram duros, com mar agitado e os viajantes enjoando muito. A 3 de março, os cagliaritanos exultaram ao ver desembarcar seu rei: queriam carregá-lo nos ombros, mas Carlos Manuel e Maria Clotilde fizeram questão de subir a pé o forte aclive que, ainda hoje, separa o cais do centro antigo. Na catedral, cantou-se o solene "Te Deum" de graças, e nos seis meses que se seguiram até o retorno para a península, em setembro daquele ano, os monarcas e a nobreza foram alojados precariamente, acampando pelas casas das principais famílias e vivendo com simplicidade.
Essa primeira volta dos monarcas de Savóia ocorreu num breve momento em que a coligação antifrancesa -e anti-revolucionária- parecia levar a melhor sobre a "Grande Armée" de Bonaparte. Mas o jogo logo virou de novo, reis e corte vagando pela Itália, ora contando com a boa vontade de algum nobre romano -como os Colonna-, ora abrigando-se na corte de parentes, como os Bourbons de Nápoles, recebendo mesadas modestas do czar Paulo da Rússia e do governo britânico, aliado das monarquias retrógradas da Europa.
Clotilde, o homem do casal, morreu em Nápoles, em odor de santidade, e Carlos Manuel abdicou em favor do irmão, Vítor Manuel 1º, em 1802, passando o resto da vida num mosteiro. Sempre no exílio, o novo rei fugiria de novo para a Sardenha em 11 de fevereiro de 1806, ali permanecendo até 18 de fevereiro de 1814: quando entrou em Turim, a cidade não via seus soberanos havia 16 anos, oito dos quais tinham sido passados, ininterruptamente, em território sardo.

Fuga espetacular
Fernando 1º de Bourbon das Duas Sicílias e sua incrível mulher, Maria Carolina de Habsburgo, fugiram de Nápoles a 23 de dezembro de 1799, duas semanas depois de os Savóias deixarem Turim pela primeira vez. Uma fuga espetacular, coordenada por Nelson [almirante britânico], então já o herói da Batalha do Nilo: quatro navios, 20 barcos mercantes, 2.000 pessoas, tempestades, a morte de um dos príncipes reais a bordo e a chegada a Palermo após quatro dias de puro inferno.
Entre os fugitivos ia o embaixador britânico, sir William Hamilton, conhecido na Europa como homem culto, amante de vulcões, de vasos antigos -dos quais se forniu bem nas escavações de Herculano e Pompéia- e de Emma Hart, uma aventureira bem à moda da época, que passou por vários braços antes de se tornar, legalmente, lady Hamilton.
Esse primeiro exílio siciliano foi curto: em finais de junho, a corte estava de volta a Nápoles, que conheceu então um banho de sangue inesquecível, mais uma vez orquestrado pelo heróico Nelson, e que visava afogar as pretensões liberais e as simpatias bonapartistas dos súditos infiéis.
Fernando e Carolina -que, de modo semelhante ao que se passava entre o casal Savóia, tinha muito mais gosto pela política que o marido- equilibraram-se no poder até o final de janeiro de 1806, quando Napoleão, mais uma vez, os correu de Nápoles -Fernando primeiro, Carolina, mais enredeira, três semanas depois.
O rei voltou em meados de 1815; a rainha, nunca mais: no ano anterior, havia morrido em Viena, bisavó do filho único do imperador, já que sua neta, Maria Luísa de Habsburgo, casou-se com ele e foi a mãe do rei de Roma. Parece que costumava vociferar, desesperada, ser a mais cruel das ironias o fato de ter-se tornado antepassada do filho do Anticristo.
Dona Maria 1ª de Bragança e toda a família real portuguesa, bem como o governo -ministros, arquivos, funcionários-, a nobreza reacionária que não apoiou Junot e uma pequena multidão de cerca de 15 mil pessoas, espremida em 16 navios -os números são contraditórios- deixaram Lisboa em 27 de novembro de 1807, quando os Savóias e os Bourbons de Nápoles já haviam fugido duas vezes e começavam, da periferia de seus reinos, a governar, pela segunda vez, os domínios em pandarecos.

Exemplo para dom João
Como Carlos Manuel e Fernando antes dele, dom João, o príncipe regente, teve ajuda da frota inglesa na organização da travessia atlântica, e nos calcanhares, incansável, a mulher, Carlota Joaquina, tão dada à política quanto Clotilde e Carolina, a atormentá-lo com sonhos de hegemonia americana. Como todos na Europa, dom João sabia que seus "primos" de Turim e de Nápoles tentavam salvar os domínios da dinastia agarrados a uma das partes deles, longe do centro. A viagem de dom João foi bem mais longa: a duração variou para os diferentes navios, mas o seu só chegou ao Rio a 7 de março de 1808, mais de três meses depois de ter deixado a barra do Tejo.
Sua estada "brasileira" também foi maior: 13 anos ininterruptos de exílio americano. As terras onde se escondeu eram extensas e promissoras, nada comparáveis à Sardenha agreste ou mesmo à Sicília, cobiçada pela grande fertilidade e valor estratégico, mas modesta ante o quase continente que dom João tinha sob seu jugo.
Por ter fugido por último, dom João pôde se valer das experiências anteriores. Um de seus principais ministros, dom Rodrigo de Sousa Coutinho, tinha antes sido representante diplomático em Turim e ali se casado com dona Gabriela de San Marzano, família das mais nobres do Piemonte. Não foi isso que fez toda a diferença. Mas isso, com certeza, fez muita diferença.


LAURA DE MELLO E SOUZA é professora titular de história moderna na USP e prepara um livro sobre as fugas reais no contexto da crise do Antigo Regime.


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