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A fuga das cortes
Exílio da família real portuguesa foi precedido por iniciativas similares de Carlos Manuel 4º, da Sardenha, e Fernando 1º, das Duas Sicílias
LAURA DE MELLO E SOUZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A casa de Bragança não
foi a primeira nem a
única dinastia a fugir
com sua corte em virtude dos
avanços de Napoleão Bonaparte. Antes que o militar brilhante se celebrizasse e viesse a se
tornar imperador, mas já no
contexto de convulsão do Antigo Regime, Luís 16 e Maria Antonieta, como se sabe, tentaram passar a fronteira, mas
acabaram presos em Varennes.
Talvez resida nessa fuga malograda o "mito fundador" das
que vieram depois, mas é bom
lembrar que, dias após a queda
da Bastilha, um dos irmãos do
rei da França, o conde de Artois
-e futuro Carlos 10º- partia
para Turim, terra de seu sogro,
o rei da Sardenha, Vítor Amadeu 3º de Savóia, e lá se estabelecia com um simulacro de corte, alegre, despreocupada, inconseqüente e um tanto escandalosa.
O sogro ficou pisando em
ovos e, mesmo depois que Artois partiu, procurou, como
Portugal e outras monarquias
européias secundárias, manter-se o mais neutro possível
ante o conflito que ganhava a
Europa.
Não conseguiu: teve de lutar
com os aliados, contra a pátria
francesa e, quando o norte da
Itália se tornou o palco das façanhas militares do Exército
revolucionário, foi dobrando a
cabeça, cedendo à ocupação cada vez mais visível do seu ducado do Piemonte, o filé mignon
da monarquia sarda, que tinha
o título na ilha mediterrânica,
mas a riqueza, o prestígio e a
tradição na terra continental.
Luís 16 e Maria Antonieta foram executados, o pânico se espalhou entre a realeza da Europa, Vitor Amadeu morreu e foi
sucedido por Carlos Manuel 4º,
fraco e perplexo, casado com
uma das irmãs do Bourbon decapitado, Maria Clotilde, cabeça de estadista em pele de beata. A 9 de dezembro de 1798, rei,
rainha, irmãos, cunhados -a
alta nobreza- deixavam Turim
às cinco horas da manhã sob
neve abundante, as rodas das
carruagens despencando pelas
ribanceiras, vendo-se na contingência de pernoitar em lugares impensáveis para uma casa
tão antiga, que, na sua sede e
nos arredores, contava com vários palácios deslumbrantes
para passar temporadas.
Capital desconhecida
O destino era Cagliari, capital
da Sardenha, onde nunca duque nenhum havia pisado antes, apesar de serem os reis da
ilha desde 1720, em decorrência das ratificações do Tratado
de Utrecht. Percalços incontáveis impediram o embarque da
corte até 24 de fevereiro de
1799, em Livorno.
Os oito dias de travessia foram duros, com mar agitado e
os viajantes enjoando muito.
A 3 de março, os cagliaritanos
exultaram ao ver desembarcar
seu rei: queriam carregá-lo nos
ombros, mas Carlos Manuel e
Maria Clotilde fizeram questão
de subir a pé o forte aclive que,
ainda hoje, separa o cais do centro antigo.
Na catedral, cantou-se o solene "Te Deum" de graças, e nos
seis meses que se seguiram até
o retorno para a península, em
setembro daquele ano, os monarcas e a nobreza foram alojados precariamente, acampando pelas casas das principais famílias e vivendo com simplicidade.
Essa primeira volta dos monarcas de Savóia ocorreu num
breve momento em que a coligação antifrancesa -e anti-revolucionária- parecia levar a
melhor sobre a "Grande Armée" de Bonaparte. Mas o jogo
logo virou de novo, reis e corte
vagando pela Itália, ora contando com a boa vontade de algum
nobre romano -como os Colonna-, ora abrigando-se na
corte de parentes, como os
Bourbons de Nápoles, recebendo mesadas modestas do czar
Paulo da Rússia e do governo
britânico, aliado das monarquias retrógradas da Europa.
Clotilde, o homem do casal,
morreu em Nápoles, em odor
de santidade, e Carlos Manuel
abdicou em favor do irmão, Vítor Manuel 1º, em 1802, passando o resto da vida num mosteiro. Sempre no exílio, o novo
rei fugiria de novo para a Sardenha em 11 de fevereiro de 1806,
ali permanecendo até 18 de fevereiro de 1814: quando entrou
em Turim, a cidade não via seus
soberanos havia 16 anos, oito
dos quais tinham sido passados, ininterruptamente, em
território sardo.
Fuga espetacular
Fernando 1º de Bourbon das
Duas Sicílias e sua incrível mulher, Maria Carolina de Habsburgo, fugiram de Nápoles a 23
de dezembro de 1799, duas semanas depois de os Savóias deixarem Turim pela primeira vez.
Uma fuga espetacular, coordenada por Nelson [almirante
britânico], então já o herói da
Batalha do Nilo: quatro navios,
20 barcos mercantes, 2.000
pessoas, tempestades, a morte
de um dos príncipes reais a bordo e a chegada a Palermo após
quatro dias de puro inferno.
Entre os fugitivos ia o embaixador britânico, sir William
Hamilton, conhecido na Europa como homem culto, amante
de vulcões, de vasos antigos
-dos quais se forniu bem nas
escavações de Herculano e
Pompéia- e de Emma Hart,
uma aventureira bem à moda
da época, que passou por vários
braços antes de se tornar, legalmente, lady Hamilton.
Esse primeiro exílio siciliano
foi curto: em finais de junho, a
corte estava de volta a Nápoles,
que conheceu então um banho
de sangue inesquecível, mais
uma vez orquestrado pelo heróico Nelson, e que visava afogar as pretensões liberais e as
simpatias bonapartistas dos súditos infiéis.
Fernando e Carolina -que,
de modo semelhante ao que se
passava entre o casal Savóia, tinha muito mais gosto pela política que o marido- equilibraram-se no poder até o final de
janeiro de 1806, quando Napoleão, mais uma vez, os correu de
Nápoles -Fernando primeiro,
Carolina, mais enredeira, três
semanas depois.
O rei voltou em meados de
1815; a rainha, nunca mais: no
ano anterior, havia morrido em
Viena, bisavó do filho único do
imperador, já que sua neta, Maria Luísa de Habsburgo, casou-se com ele e foi a mãe do rei de
Roma. Parece que costumava
vociferar, desesperada, ser a
mais cruel das ironias o fato de
ter-se tornado antepassada do
filho do Anticristo.
Dona Maria 1ª de Bragança e
toda a família real portuguesa,
bem como o governo -ministros, arquivos, funcionários-, a
nobreza reacionária que não
apoiou Junot e uma pequena
multidão de cerca de 15 mil pessoas, espremida em 16 navios
-os números são contraditórios- deixaram Lisboa em 27
de novembro de 1807, quando
os Savóias e os Bourbons de
Nápoles já haviam fugido duas
vezes e começavam, da periferia de seus reinos, a governar,
pela segunda vez, os domínios
em pandarecos.
Exemplo para dom João
Como Carlos Manuel e Fernando antes dele, dom João, o
príncipe regente, teve ajuda da
frota inglesa na organização da
travessia atlântica, e nos calcanhares, incansável, a mulher,
Carlota Joaquina, tão dada à
política quanto Clotilde e Carolina, a atormentá-lo com sonhos de hegemonia americana.
Como todos na Europa, dom
João sabia que seus "primos"
de Turim e de Nápoles tentavam salvar os domínios da dinastia agarrados a uma das partes deles, longe do centro. A viagem de dom João foi bem mais
longa: a duração variou para os
diferentes navios, mas o seu só
chegou ao Rio a 7 de março de
1808, mais de três meses depois
de ter deixado a barra do Tejo.
Sua estada "brasileira" também foi maior: 13 anos ininterruptos de exílio americano. As
terras onde se escondeu eram
extensas e promissoras, nada
comparáveis à Sardenha agreste ou mesmo à Sicília, cobiçada
pela grande fertilidade e valor
estratégico, mas modesta ante
o quase continente que dom
João tinha sob seu jugo.
Por ter fugido por último,
dom João pôde se valer das experiências anteriores. Um de
seus principais ministros, dom
Rodrigo de Sousa Coutinho, tinha antes sido representante
diplomático em Turim e ali se
casado com dona Gabriela de
San Marzano, família das mais
nobres do Piemonte. Não foi isso que fez toda a diferença. Mas
isso, com certeza, fez muita diferença.
LAURA DE MELLO E SOUZA é professora titular de história moderna na USP e prepara um livro sobre as fugas reais no contexto da crise do
Antigo Regime.
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