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O mito das Missões
Historiadora diz que pintores da missão francesa vieram atrás de oportunidades e diminui papel atribuído a Debret
MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL
Na época em que a corte
portuguesa criava uma
nova sociedade no Rio
de 1816, dom João 6º era um
monarca tolerante e visionário
que soube lidar com forças políticas em choque, carregava a
tradição cultural de uma corte
européia e patrocinou a vinda
de um grupo de grandes artistas franceses, como Debret,
com o objetivo de desenvolver
artisticamente a imagem de um
novo e grandioso império.
Certo? Errado. Se depender
da historiadora Lilia Moritz
Schwarcz, essa imagem triunfalista criada pela historiografia "saquarema" já caiu por terra. Não se fala mais em Missão
Artística Francesa, mas em colônia de artistas desempregados e em crise, que sem pedido
nem apoio de dom João e até
contra a vontade da corte lusitana vieram tentar a sorte no
Brasil. O resto é história. Ou
melhor, construção da nossa
história.
Em linhas gerais, essa é a tese
de "O Sol do Brasil", que será
lançado no final deste mês e
que promete ter tanta repercussão quanto "A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis" e
"As Barbas do Imperador", dois
influentes livros anteriores de
Schwarcz (todos lançados pela
Companhia das Letras).
Nunca existiu uma Missão
Artística Francesa com a conotação que se dá atualmente ao
grupo. A própria expressão
("Missão Artística de 1816") foi
formulada apenas em 1912 pelo
bisneto do pintor Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830), o
historiador Afonso Taunay, para a "Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro".
"O que o livro vai mostrar é
essa idéia de que foram os franceses que se autoconvidaram",
diz Schwarcz. "Estavam desempregados por causa da participação política perigosa
[com Napoleão]. Vinham tentar a sorte. A Academia [de Belas Artes] não era um projeto da
corte, era um projeto do [Joachim] Lebreton. Para a corte,
eram uns regicidas. Foi por aí
que eu comecei a perceber que
a história não fechava bem."
Lebreton
Ou seja, a iniciativa para a
vinda dos artistas foi de Lebreton (1760-1819), o influente secretário perpétuo da classe de
belas-artes do Instituto de
França, em situação delicada
na França após a queda de Napoleão. "O papel ativo foi do Lebreton, que teve a idéia, entrou
em contato com os outros, arregimentou o grupo e, enfim,
fez a coisa circular."
Aliás, nem Jean-Baptiste Debret, considerado o mestre que
melhor retratou o Brasil joanino, pode ser considerado o
principal nome do grupo. Não é
à toa que o foco de pesquisas da
professora titular do departamento de antropologia da USP
tenha sido Nicolas-Antoine
Taunay, que será tema de grande exposição programada para
o Rio e para São Paulo.
"O grande pintor, se você
abrir qualquer livro de história
da arte francesa, é o Taunay",
afirma a historiadora. "Ele tinha uma liberdade profissional
que o Debret não tinha. Debret
nem era da academia. Ele seria
aceito depois pelo Instituto de
França, quando publicou o
"Viagem Pitoresca'".
Para a autora, esses dois artistas tinham projetos distintos. "O Taunay jamais quis ser
um pintor brasileiro. Foi obrigado a fazer telas napoleônicas,
mas não era um pintor de história, era um pintor de paisagem.
Era o único que vinha com uma
licença do Instituto de França,
diferentemente de Debret, que
se transformou numa espécie
de pintor da corte, um documentarista, coisa que o Taunay
nunca quis fazer."
"Na minha opinião, [Taunay]
virou um artista entre dois
mundos, porque aqui no Brasil
ele era um artista muito mais
francês. E, na França, depois,
seria acusado de ser um artista
muito mais brasileiro, contaminado com as cores do Brasil.
Para ele, o sol do Brasil brilhava
demais, reclamava da floresta.
Ele volta na época do romantismo e aí seria compreendido como um pintor romântico, de
cores fortes demais."
Projeto saquarema
Schwarcz faz parte da comissão para as comemorações dos
200 anos, constituída pela Prefeitura do Rio. Mas é partidária
da visão do historiador pernambucano Evaldo Cabral de
Mello, feroz crítico da historiografia que valoriza o papel carioca. Foi influenciada por Cabral de Mello que ela desenvolveu sua pesquisa. "Esse projeto
de reabilitação de dom João é
um projeto saquarema, para
mostrar que dom João era um
rei sábio e que tinha um projeto
iluminista", diz Schwarcz.
Para ela, as comemorações
deveriam servir "para entender
por que nós construímos esse
modelo de história tão pautado
na lógica do Rio de Janeiro, na
lógica das elites do Rio". De alguma forma, é como se a vinda
da família real fosse na prática
uma "herança maldita" oitocentista.
Para a historiadora, "sem dúvida nenhuma a vinda de dom
João é o pontapé inicial dessa
história. A vinda da família real
veio ratificar essa nova divisão
geográfica do país, cuja grande
força estaria concentrada agora
no sudeste".
Lilia Schwarcz está espantada com a dimensão que as comemorações ganharam. "Tivemos um resultado absolutamente inesperado. Quando o
dr. Alberto [da Costa e Silva]
me convidou para participar
[da comissão], faz agora dois
anos e meio, não se falava nada
da família real", afirma. "O perigo de despertar a idéia cívica é
você cair numa certa patriotada, só na idéia da celebração.
Esse é um dos lados mais perversos dessa repercussão", diz.
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