São Paulo, domingo, 02 de março de 2008

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O mito das Missões

Historiadora diz que pintores da missão francesa vieram atrás de oportunidades e diminui papel atribuído a Debret

MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL

Na época em que a corte portuguesa criava uma nova sociedade no Rio de 1816, dom João 6º era um monarca tolerante e visionário que soube lidar com forças políticas em choque, carregava a tradição cultural de uma corte européia e patrocinou a vinda de um grupo de grandes artistas franceses, como Debret, com o objetivo de desenvolver artisticamente a imagem de um novo e grandioso império.
Certo? Errado. Se depender da historiadora Lilia Moritz Schwarcz, essa imagem triunfalista criada pela historiografia "saquarema" já caiu por terra. Não se fala mais em Missão Artística Francesa, mas em colônia de artistas desempregados e em crise, que sem pedido nem apoio de dom João e até contra a vontade da corte lusitana vieram tentar a sorte no Brasil. O resto é história. Ou melhor, construção da nossa história.
Em linhas gerais, essa é a tese de "O Sol do Brasil", que será lançado no final deste mês e que promete ter tanta repercussão quanto "A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis" e "As Barbas do Imperador", dois influentes livros anteriores de Schwarcz (todos lançados pela Companhia das Letras).
Nunca existiu uma Missão Artística Francesa com a conotação que se dá atualmente ao grupo. A própria expressão ("Missão Artística de 1816") foi formulada apenas em 1912 pelo bisneto do pintor Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830), o historiador Afonso Taunay, para a "Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro".
"O que o livro vai mostrar é essa idéia de que foram os franceses que se autoconvidaram", diz Schwarcz. "Estavam desempregados por causa da participação política perigosa [com Napoleão]. Vinham tentar a sorte. A Academia [de Belas Artes] não era um projeto da corte, era um projeto do [Joachim] Lebreton. Para a corte, eram uns regicidas. Foi por aí que eu comecei a perceber que a história não fechava bem."

Lebreton
Ou seja, a iniciativa para a vinda dos artistas foi de Lebreton (1760-1819), o influente secretário perpétuo da classe de belas-artes do Instituto de França, em situação delicada na França após a queda de Napoleão. "O papel ativo foi do Lebreton, que teve a idéia, entrou em contato com os outros, arregimentou o grupo e, enfim, fez a coisa circular."
Aliás, nem Jean-Baptiste Debret, considerado o mestre que melhor retratou o Brasil joanino, pode ser considerado o principal nome do grupo. Não é à toa que o foco de pesquisas da professora titular do departamento de antropologia da USP tenha sido Nicolas-Antoine Taunay, que será tema de grande exposição programada para o Rio e para São Paulo.
"O grande pintor, se você abrir qualquer livro de história da arte francesa, é o Taunay", afirma a historiadora. "Ele tinha uma liberdade profissional que o Debret não tinha. Debret nem era da academia. Ele seria aceito depois pelo Instituto de França, quando publicou o "Viagem Pitoresca'".
Para a autora, esses dois artistas tinham projetos distintos. "O Taunay jamais quis ser um pintor brasileiro. Foi obrigado a fazer telas napoleônicas, mas não era um pintor de história, era um pintor de paisagem. Era o único que vinha com uma licença do Instituto de França, diferentemente de Debret, que se transformou numa espécie de pintor da corte, um documentarista, coisa que o Taunay nunca quis fazer."
"Na minha opinião, [Taunay] virou um artista entre dois mundos, porque aqui no Brasil ele era um artista muito mais francês. E, na França, depois, seria acusado de ser um artista muito mais brasileiro, contaminado com as cores do Brasil. Para ele, o sol do Brasil brilhava demais, reclamava da floresta. Ele volta na época do romantismo e aí seria compreendido como um pintor romântico, de cores fortes demais."

Projeto saquarema
Schwarcz faz parte da comissão para as comemorações dos 200 anos, constituída pela Prefeitura do Rio. Mas é partidária da visão do historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello, feroz crítico da historiografia que valoriza o papel carioca. Foi influenciada por Cabral de Mello que ela desenvolveu sua pesquisa. "Esse projeto de reabilitação de dom João é um projeto saquarema, para mostrar que dom João era um rei sábio e que tinha um projeto iluminista", diz Schwarcz.
Para ela, as comemorações deveriam servir "para entender por que nós construímos esse modelo de história tão pautado na lógica do Rio de Janeiro, na lógica das elites do Rio". De alguma forma, é como se a vinda da família real fosse na prática uma "herança maldita" oitocentista.
Para a historiadora, "sem dúvida nenhuma a vinda de dom João é o pontapé inicial dessa história. A vinda da família real veio ratificar essa nova divisão geográfica do país, cuja grande força estaria concentrada agora no sudeste".
Lilia Schwarcz está espantada com a dimensão que as comemorações ganharam. "Tivemos um resultado absolutamente inesperado. Quando o dr. Alberto [da Costa e Silva] me convidou para participar [da comissão], faz agora dois anos e meio, não se falava nada da família real", afirma. "O perigo de despertar a idéia cívica é você cair numa certa patriotada, só na idéia da celebração. Esse é um dos lados mais perversos dessa repercussão", diz.


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