São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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JOÃO PAULO 2º

A MORTE DO PAPA

Jovens marcam "última viagem" de João Paulo 2º

As palavras finais do papa, segundo seu porta-voz, foram dirigidas aos "papaboys", jovens seguidores que passaram a madrugada em vigília

Luca Bruno/Associated Press
Jovem que fez vigília durante o dia todo se deita com terço nas mãos, em Roma


CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A ROMA

Faltava pouco para 22h (17h em Brasília) quando as cerca de 50 mil pessoas que rezavam o rosário na praça São Pedro pareciam prender coletivamente a respiração ao ver que se acendiam as luzes no quarto de dormir do papa João Paulo 2º, na esquina do terceiro andar do Palácio Episcopal.
Era o sinal de que o papa estava iniciando sua "última viagem", como pouco antes havia dito o cardeal Edmund Szoka, que preside o governo do Vaticano.
Um minuto depois, o cardeal Leandro Sandrini confirmou: "Nosso querido santo padre retornou à casa do Senhor". A praça fez um denso e impressionante silêncio, os olhos de todos grudados na janela do terceiro andar, lágrimas escorrendo.
Da unção dos enfermos até a morte, foram 46 horas de agonia.
Um longo aplauso de despedida saudou Karol Wojtyla, que completaria 85 anos em maio, mais de 26 como chefe da Igreja Católica Apostólica Romana.
A nota oficial comunicando a morte tinha só dois parágrafos. O primeiro avisava que "o Santo Padre morreu nesta noite às 21h37 em seu apartamento privado".
Acrescentava que haviam sido adotados todos os procedimentos contidos na constituição apostólica "Universi Dominici gregis", promulgada pelo próprio João Paulo 2º e que governa a igreja até a eleição do novo papa.
O conclave que escolherá o sucessor de João Paulo 2º começará dentro de no mínimo 15 e, no máximo, 20 dias.

"Eu os procurei, agora vocês vieram a mim e por isso lhes agradeço", disse João Paulo 2º respondendo a cântico de jovens na praça São Pedro, segundo Joaquín Navarro-Valls
Se tiverem sido seguidas rigorosamente as normas da Igreja Católica, a morte do papa foi constatada pelo camerlengo Eduardo Martínez Somalo, cardeal espanhol que assume interinamente o governo eclesial até a escolha do novo papa.
"Karol Wojtyla", repetiu três vezes o cardeal Somalo, conforme manda o rito. Em seguida, foi quebrado o anel do papa -chamado "anel do pescador", porque a missão de Pedro, o primeiro papa, e de seus sucessores é pescar fiéis para a igreja. Serve para evitar, de acordo com outra velhíssima tradição, que o selo papal caía em mãos erradas e chancele documentos inconvenientes.
Só ao ser quebrado o anel, o papado de João Paulo 2º foi dado por oficialmente encerrado. O silêncio profundo na praça São Pedro foi quebrado apenas pelo repicar dos sinos da grande basílica, em sinal de luto.
A massa de fiéis volta a se reunir hoje na praça, para a Missa da Divina Misericórdia, a ser celebrada pelo cardeal Angelo Sodano, o secretário de Estado. Era essa, pelo menos, a promessa de uma faixa estendida na praça pelos "papaboys", os jovens militantes das Jornadas Mundiais da Juventude: "Estamos aqui sob a tua cruz/não te abandonaremos jamais".
Foi justamente com os jovens o último diálogo, embora indireto, de João Paulo 2º, conforme o relato feito pela manhã por seu porta-voz, Joaquín Navarro-Valls.
Os jovens cantando: "Que cosa ha venito a cercare?" (que coisa veio procurar?). O coro respondia: "Ho venito a cercare Cristo" (vim procurar Cristo).
Segundo Navarro-Valls, o papa respondeu ao cântico. "Vi ho cercato/siete venuti da me/e vi ringrazio" (eu os procurei, agora vocês vieram a mim e por isso lhes agradeço), disse, de forma entrecortada, com imensa dificuldade, conforme a reconstituição que seu secretário particular conseguiu fazer e que Navarro-Valls relatou aos jornalistas, acrescentando que, "provavelmente", o papa se referia aos jovens.
O diálogo indireto prosseguiu: a partir do momento em que as emissoras de TV difundiram a frase do papa na boca de seu porta-voz, o afluxo de jovens à praça São Pedro só fez aumentar.
"Eu ouvi, peguei minha namorada e vim para ficar perto dele", contou Gianluigi Petraglia, "piercing" discreto no nariz, igual ao da namorada, Graziela. A frase supostamente sobre os jovens talvez tenha sido o último momento de consciência de João Paulo 2º. Antes, já circulara a informação de que ele perdera a consciência, o que o Vaticano negou, mas depois admitiu que havia oscilações.
Pouco depois de 19h (14h em Brasília), um novo boletim mantinha as mesmas informações sobre o "gravíssimo" estado do papa, acrescentava que ele estava com "febre alta", mas dizia que respondia corretamente sempre que era solicitado.
Mas os jornais italianos de ontem trataram do tema como se o papa já estivesse nas mãos de Deus.
Coerente com o clima de velório antecipado, as autoridades esportivas italianas cancelaram todas as atividades previstas para ontem e hoje, inclusive os jogos de futebol da Série A, que na Itália são quase tão sagrados quanto os Mandamentos.
O tratamento de fato consumado para a morte do papa chegou ao ponto de Vittorio Messori, no "Corriere della Sera", antecipar o que considera deveria ser um dos "primeiros esforços" do novo papa: dedicar-se com "empenho e alegria" a "instruir o processo de beatificação de Karol Wojtyla".
Para a massa de jovens que afluía à praça de São Pedro sem cessar, o processo de beatificação parecia dispensável. O papa já era tratado com a devoção que os crentes dedicam apenas a seus santos muito queridos. O bispo Giovanni d'Ercole, da Secretaria de Estado, dizia que os jovens não estavam na praça para esperar o anúncio da morte do papa, mas para rezar por um milagre.
Talvez no embalo desse ambiente místico, os médicos que cuidavam do papa deixaram vazar que o estado do pontífice continuava "gravíssimo", mas acrescentavam: "O coração ainda resiste". Àquela hora, na praça, a jovem polonesa Edwige Dzecz, nascida em Cracóvia, cidade da qual Wojtyla foi arcebispo, contava que viera da capela dedicada à Nossa Senhora Negra de Czestochowa e dava sua própria explicação mística para a resistência do coração do papa: "Nossa Senhora com o seu manto materno continuará a protegê-lo".
Três horas depois, o manto cessou sua proteção, o milagre não veio, e todas as luzes do terceiro andar do Palácio Episcopal foram se acendendo para as providências necessárias ao apagar da vida de Karol Wojtyla.


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