|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
opinião
É fácil ser católico
ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI
É fácil ser católico
O barato de ser católico é fazer parte de uma religião que
não precisa ser seguida à risca
pela maioria dos fiéis. Reside
nisso parte da força do catolicismo, mas grande parte, também, de sua fraqueza.
Quando o Datafolha pergunta "Você concorda ou não com a
opinião segundo a qual "os católicos não praticam sua religião'?", 61% dos brasileiros respondem "concordo". E não é
opinião só dos que vêem a coisa
de fora. É um resultado geral
que, ao ser cruzado com a religião do entrevistado, revela que
a maioria absoluta dos próprios
católicos se reconhece nesse
espelho: nada menos que 58%
dos católicos concordam com a
frase, 10% nem concordam
nem discordam, e 31% discordam. Só 17% dos católicos discordam totalmente. Também
nas outras religiões é fortemente majoritário o grupo dos
que concordam com a ausência
de prática religiosa entre os católicos: 72% dos espíritas concordam, 65% dos pentecostais,
65% dos alinhados em "outra
religião", 64% dos protestantes
históricos, 62% dos sem religião, 56% dos candomblecistas.
Sociologicamente isso faz todo o sentido. Teologicamente
também. Não se trata de um
simples artefato estatístico tal
percepção, que, por ser generalizada, diz muito desse barato a
que me referi de início, e que
torna bem menos difícil ser católico que seguir qualquer outra igreja, sobretudo se ela for
pentecostal. A Igreja Católica
exige muitíssimo de uns poucos (monges e freiras, bispos e
padres) e pouco, bem pouco,
dos muitos. Ou seja: cerveja!
O catolicismo tem uma noção muito clara de que nem todos os seres humanos têm ouvido musical para a religião.
Fazer parte do catolicismo,
portanto, ainda mais num país
tradicionalmente católico como o Brasil e que continua contando com ampla maioria católica, significa poder escolher
(ou oscilar) entre ser católico
praticante e ser católico não
praticante. Possibilidade essa
que tem lá sua fundamentação
teológica catolicamente frisada, a qual remonta aos primórdios do cristianismo constantiniano (início do século 4 d.C.),
quando se procurou definir de
uma vez por todas o "Credo"
cristão rezado até hoje nas missas.
Dentre os 12 artigos de fé enfeixados na fórmula confessional conhecida como credo niceno-constantinopolitano, o
enunciado mais congenialmente católico talvez seja este:
"creio na comunhão dos santos" -expressão que quer dizer
justamente que os católicos na
terra são membros da mesma
sociedade a que pertencem as
almas no purgatório e os santos
no céu, e todos compartilham
por igual dos mesmos méritos e
benefícios acumulados pelo
conjunto dessa imensa "comunhão" invisível. Todos dependem dos méritos uns dos outros, e os que contribuem menos se beneficiam das bênçãos
dos que amontoam mais, cada
membro sendo detentor da
prerrogativa de ser um sacador
independentemente da contribuição que tenha dado.
Ser membro garante por si só
a participação no chamado "tesouro da igreja", espécie de fundo inesgotável de graça salvífica formado pelos méritos de todos os bons praticantes, acrescidos aos já superabundantes
méritos de Cristo e de todos os
santos que estão no céu intercedendo pela massa dos que
professam a mesma fé, embora
muitos não a pratiquem a contento. Quem gosta de literatura
sabe o alcance da palavra "compadecida" na obra consagrada
de Ariano Suassuna.
Penso que é o caso de retomá-la aqui para dar conta de
toda uma mentalidade católica:
compassiva a ponto de se
tornar complacente. Maternalidade que vai às raias da leniência, mas lhe desguarnece
os flancos quando a concorrência aumenta.
ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI é sociólogo, professor da USP e autor de "A Magia" (Publifolha)
e "O Desencantamento do Mundo" (Editora 34)
Texto Anterior: Periferia do Rio exibe avanço de evangélicos Próximo Texto: O poder da fé: Igreja pentecostal muda vida de 54% dos fiéis Índice
|