São Paulo, domingo, 06 de maio de 2007

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opinião

É fácil ser católico

ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI

É fácil ser católico O barato de ser católico é fazer parte de uma religião que não precisa ser seguida à risca pela maioria dos fiéis. Reside nisso parte da força do catolicismo, mas grande parte, também, de sua fraqueza. Quando o Datafolha pergunta "Você concorda ou não com a opinião segundo a qual "os católicos não praticam sua religião'?", 61% dos brasileiros respondem "concordo". E não é opinião só dos que vêem a coisa de fora. É um resultado geral que, ao ser cruzado com a religião do entrevistado, revela que a maioria absoluta dos próprios católicos se reconhece nesse espelho: nada menos que 58% dos católicos concordam com a frase, 10% nem concordam nem discordam, e 31% discordam. Só 17% dos católicos discordam totalmente. Também nas outras religiões é fortemente majoritário o grupo dos que concordam com a ausência de prática religiosa entre os católicos: 72% dos espíritas concordam, 65% dos pentecostais, 65% dos alinhados em "outra religião", 64% dos protestantes históricos, 62% dos sem religião, 56% dos candomblecistas.
Sociologicamente isso faz todo o sentido. Teologicamente também. Não se trata de um simples artefato estatístico tal percepção, que, por ser generalizada, diz muito desse barato a que me referi de início, e que torna bem menos difícil ser católico que seguir qualquer outra igreja, sobretudo se ela for pentecostal. A Igreja Católica exige muitíssimo de uns poucos (monges e freiras, bispos e padres) e pouco, bem pouco, dos muitos. Ou seja: cerveja! O catolicismo tem uma noção muito clara de que nem todos os seres humanos têm ouvido musical para a religião.
Fazer parte do catolicismo, portanto, ainda mais num país tradicionalmente católico como o Brasil e que continua contando com ampla maioria católica, significa poder escolher (ou oscilar) entre ser católico praticante e ser católico não praticante. Possibilidade essa que tem lá sua fundamentação teológica catolicamente frisada, a qual remonta aos primórdios do cristianismo constantiniano (início do século 4 d.C.), quando se procurou definir de uma vez por todas o "Credo" cristão rezado até hoje nas missas.
Dentre os 12 artigos de fé enfeixados na fórmula confessional conhecida como credo niceno-constantinopolitano, o enunciado mais congenialmente católico talvez seja este: "creio na comunhão dos santos" -expressão que quer dizer justamente que os católicos na terra são membros da mesma sociedade a que pertencem as almas no purgatório e os santos no céu, e todos compartilham por igual dos mesmos méritos e benefícios acumulados pelo conjunto dessa imensa "comunhão" invisível. Todos dependem dos méritos uns dos outros, e os que contribuem menos se beneficiam das bênçãos dos que amontoam mais, cada membro sendo detentor da prerrogativa de ser um sacador independentemente da contribuição que tenha dado.
Ser membro garante por si só a participação no chamado "tesouro da igreja", espécie de fundo inesgotável de graça salvífica formado pelos méritos de todos os bons praticantes, acrescidos aos já superabundantes méritos de Cristo e de todos os santos que estão no céu intercedendo pela massa dos que professam a mesma fé, embora muitos não a pratiquem a contento. Quem gosta de literatura sabe o alcance da palavra "compadecida" na obra consagrada de Ariano Suassuna.
Penso que é o caso de retomá-la aqui para dar conta de toda uma mentalidade católica: compassiva a ponto de se tornar complacente. Maternalidade que vai às raias da leniência, mas lhe desguarnece os flancos quando a concorrência aumenta.


ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI é sociólogo, professor da USP e autor de "A Magia" (Publifolha) e "O Desencantamento do Mundo" (Editora 34)


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