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opinião
Sincretismos do Brasil
REGINALDO PRANDI
Diz a pesquisa Datafolha que
17% dos brasileiros freqüentam
cultos ou serviços religiosos de
alguma religião diferente da
que professam. Esse número
sobe a 19% entre os católicos,
cresce para 37% entre os umbandistas e chega a 48% entre
os seguidores do candomblé.
Mais sectários, os evangélicos
pentecostais se mostram numa
cifra bem mais modesta: 9%.
E o que vão fazer numa religião que não é a sua? Uns vão
participar de atos com finalidade religiosa. Outros, presenciar
ritos como casamento e funeral, numa atividade mais social
que religiosa. Não raro, a coisa
se faz por necessidade religiosa
ou mágica, uma religião complementando outra. Isso é comum no Brasil, pelo caráter
sincrético de nossas religiões.
Umas mais, outras menos,
toda religião é sincrética.
Quando uma igreja pentecostal
adota práticas mágicas afro-brasileiras, como é o caso do
"descarrego", ela toma de empréstimo de suas maiores rivais
um rito mágico caro ao brasileiro, seja ele umbandista, católico, evangélico etc.
O empréstimo aproxima as
religiões em termos de linguagem e reforça sua eficácia mágica. O catolicismo carismático
foi buscar no pentecostalismo a
prática do falar em línguas estranhas e outros dons que, apesar da origem cristã comum,
são especialmente estruturadoras do pentecostalismo. Se
um fiel encontra na sua religião
elementos presentes em outras, a outra religião nunca lhe é
inteiramente estranha. Afinal,
costuma-se dizer que todos os
caminhos levam a Deus.
Pelo caráter de sua constituição histórica, as religiões afro-brasileiras são as que mais se
aproximam das outras, especialmente do catolicismo.
Quando o candomblé se formou, o catolicismo era a religião oficial do Brasil, e nenhuma outra era tolerada. Todo
brasileiro, fosse branco, índio
ou africano, devia ser batizado
católico.
Antes de serem embarcados
nos navios negreiros, ainda na
África, os escravos eram batizados e introduzidos nas práticas
rituais da Igreja Católica. Desse
modo, os negros que instituíram no Brasil as religiões afro-brasileiras eram, por força da
sociedade da época, e da lei,
também católicos. Acabaram
por estabelecer paralelos entre
as duas religiões, identificando,
por meio de símbolos ou patronagens comuns, orixás com
santos católicos, Jesus ou Nossa Senhora. Olorum foi equiparado ao Deus judaico-cristão, e
Exu, por seu caráter lascivo, astuto e trapalhão, acabou assumindo o papel do diabo. O quadro de equivalências se completara. A isso se chamou sincretismo afro-brasileiro.
No contexto cultural católico
do Brasil do século 19, o candomblé se firmou como religião subalterna e tributária do
catolicismo, do qual ainda hoje
tem dificuldade de se libertar
para se constituir como religião
autônoma. No lado de cá do
Atlântico, mitos foram adaptados à nova realidade social, rituais ganharam feições condizentes com o novo território,
deuses africanos tornaram-se
santos afro-brasileiros.
A umbanda, surgida mais tarde do candomblé e do kardecismo, manteve e reforçou tal sincretismo. Não é estranho à umbanda e ao candomblé ter seus
adeptos freqüentando missas e
sacramentos católicos. No fundo, também são católicos. A
Igreja Católica faz vistas grossas, assim como finge não ver
seus fiéis buscando nos terreiros e centros ajuda no jogo de
búzios, nos despachos, nos conselhos dos caboclos e pretos-velhos e nos passes. A mestiçagem brasileira também se faz
ver no sincretismo religioso.
REGINALDO PRANDI, professor de sociologia
da USP, é autor do modelo de pesquisa usado pelo Datafolha e autor de "Mitologia dos Orixás",
"Segredos Guardados" e "Morte nos Búzios"
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