São Paulo, terça-feira, 09 de julho de 2002

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IDENTIDADE

AUTO-ESTIMA CRESCE COM QUADRINHO E GRAFITE


Reconhecer a própria identidade ajuda o jovem pobre a escolher seu caminho e a afastar a idéia de que ele só se torna alguém se possuir os elementos valorizados pelo grupo, muitas vezes violento e criminoso. É esse o objetivo do projeto Enxame.


FLÁVIA MARREIRO
DA EQUIPE DE TRAINEES

O sábado os adolescentes do projeto Enxame gastaram com tintas e sprays. Eles pintaram o muro externo de uma outra ONG também de Fortaleza (CE), a Barraca da Amizade.
Depois de sete horas de trabalho (muro colorido com figuras circenses, um tigre, frases contra as drogas), os jovens do bairro do Mondumbim se aproximaram para ver o feito. Comentaram, trocaram telefones com os garotos. O 15 de junho ficou marcado.
"Eu não me abria, não falava com ninguém. Hoje eu falo, digo as coisas também pelo grafite", diz Ailton de Oliveira, 21, o Lirrá, ex-integrante do projeto Enxame, que participou da atividade ajudando os menos experientes na pintura. Antes do grafite e do hip hop, Lirrá fazia parte de uma gangue juvenil.
A proposta do projeto Enxame é esta: oferecer meios artísticos para os jovens buscarem suas identidades, referências culturais e reconhecimento social fugindo do estigma de violência de seus bairros.
Para especialistas, não falar sobre si, não ter "lugar social" transforma a violência por si só num acontecimento, num fim atraente, capaz de inserir os jovens pobres de uma forma radical no contexto social. Em grupo, como nas gangues, ou individualmente, eles causam impacto na cidade.
"A maior parte dos jovens não tem visibilidade social. Só quando pega em uma arma ou fica famoso como violento é que muda de status", diz Julita Lemgruber, 57, diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (RJ).
Segundo a coordenadora do projeto Enxame, a antropóloga Glória Diógenes, a falta de identidade dos jovens "causa um vazio quase insuportável".
Além das oficinas de grafite com pinturas em locais públicos do bairro e da cidade, o projeto oferece ainda oficinas de fotografia, vídeo e quadrinhos. Tudo o que produzem é registrado e discutido em sessões de conversa em grupo ou individuais.
Francileudo da Silva, o Blanco, 21, viu amigos morrerem, virarem assaltantes. No Enxame, transformou as dúvidas em relação a seu futuro em quadrinhos, virou um personagem.
Na oficina de fotografia, ele passeou pelo bairro fotografando pessoas e lugares que contavam sua história. Registrou bicho de estimação, família, bebidas, a casa. "As pessoas não sabem ver o que a periferia oferece de bom, como a ajuda dos outros, a cultura em grupo", diz, citando o que aprendeu no projeto.
Alba Zaluar, coordenadora do Nupevi (Núcleo de Estudos das Violências da Uerj), defende que atividades como as do Enxame contribuem para a diminuição da violência. "O problema é a continuidade, por isso o Estado tem de ser o grande coordenador dessas atividades", diz.

Prêmio
No caso do Projeto Enxame, a continuidade está garantida pelo menos por mais um ano. O projeto receberá R$ 60 mil por ter sido finalista, concorrendo com outros 304 projetos, do prêmio Cidadão 21-Arte, do Instituto Ayrton Senna e da Embratel.
O dinheiro vai ser aplicado na ampliação do número de atendidos, dos atuais 21 para 40 adolescentes. Todos com históricos de violência ou cumprindo medida de liberdade assistida -encaminhados pelo Juizado da Infância e do Adolescência de Fortaleza por terem cometido infrações.
O público do projeto tem de 13 a 18 anos e vem dos bairros Vicente Pinzón (zona leste de Fortaleza), que inclui os morros de Santa Terezinha e Castelo Encantado, e Mucuripe, onde se instalou a ONG. Apesar da ampliação, o número ainda é pequeno se comparado à população do bairro Vicente Pinzón, 33.898 pessoas -36% em situação de risco (vivendo abaixo da linha de pobreza ou com famílias desestruturadas, por exemplo).
Os coordenadores do projeto acreditam, porém, que o grafite nos muros e as exposições dos produtos artísticos dos jovens no bairro terão efeito multiplicador.

"Fazer enxame"
Antes da atuação da ONG, a expressão "fazer enxame" dita por jovens em bailes da periferia causava pânico: era a hora de juntar as turmas para o confronto.
Segundo levantamento da Secretaria de Segurança Pública do Ceará, em 1999 eram 227 gangues em Fortaleza, com jovens envolvidos em crimes de lesão corporal, homicídios, furtos e roubos.
Em 2000, a união de Glória Diógenes com um grupo de hip hop do Mucuripe e redondezas, o Conscientes do Sistema, que já trabalhava com a mobilização dos jovens contra as gangues, resultou no Projeto Enxame. O objetivo era fazer com que os jovens continuassem a ser assunto no bairro e na cidade, mas por "fazerem enxames" do bem, com arte.
Apesar de não haver novos levantamentos sobre o número de gangues, os depoimentos da população apontam que a situação teve melhora sensível.
"Era muito pior há quatro anos. Hoje eu considero o morro de Santa Terezinha um lugar calmo", diz Vilanir Nascimento, 49, líder comunitária há 16 anos.
As oficinas do Enxame não têm caráter profissionalizante. Na Bahia, um projeto de extensão da Universidade Federal (UFBA), no subúrbio de Salvador, segue o mesmo modelo. Pelo menos 160 jovens participam de oficinas culturais que desenvolvem a auto-estima e as identidades. Assim como no Enxame, não recebem bolsa nem são encaminhados para o mercado de trabalho.
Para o professor Gey Espinheira, 56, um dos coordenadores do projeto baiano, apesar de não serem encaminhados para um emprego, os adolescentes que passam pelas oficinas ganham instrumentos para saber o que querem seguir de fato e podem tentar um trabalho.
Mas para o cantor Joel Rodrigues, da banda Conscientes do Sistema, que cresceu no Castelo Encantado (uma das áreas com problema de gangues em Fortaleza), o encaminhamento para o trabalho é um aspecto essencial. "Depois que fica com mais de 18, volta todo mundo para a rua", diz.
A socióloga Julita Lemgruber diz que antes de cursos profissionalizantes mais comuns, os jovens deviam ser estimulados a trabalhar com rádio, televisão, maneiras de expressão simbólicas em suas comunidades. "Não adianta qualquer curso, os jovens não querem repetir os caminhos que viram os pais fazerem."


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