São Paulo, quinta-feira, 10 de julho de 2008

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A cidade da paixão

Matava-se e morria-se por amor no Rio de 1958, em que os barquinhos deslizavam em um mar mais azul; o Brasil de JK era o país da esperança e da tolerância democrática, mas pobreza e inflação não eram pequenas

João Medeiros/Acervo Inst. Moreira Salles
O calçadão de Copacabana no final dos anos 50, símbolo de um país possível

MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

Uma mulher indagou à amiga acerca do peixeiro, a amiga cascateou que ele baixara ao hospital, a mulher afligiu-se, o dito-cujo irrompeu corado e pimpão, e a mulher rasgou com gilete a face da já então ex-amiga.
Estavam diante da boate Pigalle, na avenida Atlântica, borda da praia de Copacabana. O motivo da refrega? "Gostavam do mesmo peixeiro", titulou o jornal.
Imprimiam-se as notícias com tintas passionais: "Matou a esposa e em seguida suicidou-se"; "Tentou matar Ilazir e suicidou-se depois"; "Tentou matar esposa e agrediu policiais"; "Baleado nos pés por gracejar com madame" (o marido da madame atirou).
São histórias de junho de 1958, passadas no Rio de Janeiro, berço da bossa nova, e contadas pelo "Diário Carioca".
Tinha mais: "Agredida a facadas pelo marido bêbedo" (ela rejeitara a reconciliação); "2º Tribunal julga o vendedor da mulher" (o marido arrependeu-se e quis assassinar o comprador); "Tentou matar dois rivais em três dias" (um crooner de cabaré atentou contra o colega porque uma dançarina bendissera o gogó do outro).
Ainda: "José mata Maria para suicidar-se"; "Dois tiros contra funcionária na Câmara" (o deputado disparou, dizia-se, porque a "outra" voltara para o marido); "Guarda-Civil matou amante com seis tiros".
Elas também atacavam: "Esclarecida a morte do motorista" (a mulher o liquidou porque "não era feliz no casamento").

809 desquites
Padecia-se mesmo de amor e desamor no Rio, não apenas em dois hits daquele ano, a bossa nova nascente "Chega de Saudade" ("Porque eu não posso mais sofrer") e o samba-canção dor-de-cotovelo "Castigo" ("A gente briga/ Diz tanta coisa que não quer dizer/ Briga pensando que não vai sofrer").
Se as mulheres que sofriam no matrimônio cortassem o mal pela raiz -ou pelo tron- co-, a população do ainda Distrito Federal não alcançaria os 3.030.619 corações estimados em 1º de julho de 1958, quase 600 mil senhoras casadas.
Ignora-se quantos dos 466 suicídios do Rio no ano -285 por veneno- decorreram de desencontros amorosos. A Justiça homologou 809 desquites, catalogados na estatística oficial como "aspectos negativos ou patológicos".
Em julho de 1958, o caso Aída Curi hipnotizou a nação -a ex-aluna de colégio de freiras foi empurrada, ou caiu sozinha, das alturas de um prédio da avenida Atlântica. Dois espécimes da "juventude transviada" foram acusados. Jamais se chegou a um consenso.
Como Juscelino Kubitschek, o presidente bossa nova, estava longe de ser consensual. Eleito em 1955 com pouco mais de um terço dos votos, não emplacaria o sucessor.
Talvez só um nostálgico irrecuperável diga que os brasileiros sem fortuna vivem pior hoje que sob JK. Meio século atrás morriam, antes do primeiro aniversário, 124 bebês a cada mil nascidos vivos. Agora, o número roça os 20.
O Brasil, porém, conheceria desigualdade maior, atestam Ipea e IBGE: em 1960, a renda dos 10% mais ricos equivalia a 34 vezes a dos 10% mais pobres; em 1990, a razão seria 78. Em 2006, 46.
A dívida externa crescia e a inflação se acelerava, contudo a economia progredia fabulosos 10,8% em 1958. Os primeiros Fuscas eram anunciados, Brasília vinha aí e a tolerância democrática se impunha.

22 jornais diários
No Rio, o barquinho deslizava em um mar mais azul. A esperança contaminava as classes médias, dominantes nos bairros onde a bossa nova foi germinada, Copacabana (165.986 indivíduos no censo de 1960) e Ipanema (47.996).
Os cariocas abarrotavam os cine-teatros (54 milhões de ingressos em 1958; 7 milhões a mais que na capital paulista), freqüentavam exposições de arte (143 no ano) e devoravam jornais (dois anos antes havia 22 diários) -dados do IBGE.
Em outubro, senhoras patuscas -e não só elas- se ofenderam com os ardores pecaminosos de "Os Sete Gatinhos", nova peça de Nelson Rodrigues.
Antes, no junho de noticiário quente, a torcida ensandecida apupou o triunfo de Adalgisa Colombo, um broto legal, no concurso Miss DF, no Maracanãzinho. E ovacionou sua consagração no Miss Brasil. O título mundial de futebol alvejou o complexo de vira-latas. A Copa era nossa, o rádio a transmitiu.
Tão bom era 1958 que o seu "biógrafo", o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, viria a denominá-lo "O ano que não devia terminar".
Muito antes de dezembro, em 13 de junho, o "Diário Carioca" publicou, às vésperas do jogo contra a URSS: "Garrincha é uma hipótese". Mané virou titular e deu no que deu. Em 1958, o Brasil também era uma hipótese. No que deu o país? Ainda não se sabe bem.


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