São Paulo, sábado, 19 de junho de 2010

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OPINIÃO

Vai-se o escultor das palavras

PASQUALE CIPRO NETO
COLUNISTA DA FOLHA

"A oficina do escultor é alta como uma caverna que esvaziasse uma montanha." Assim começa "A Oficina do Escultor". Em seu livro de crônicas "A Bagagem do Viajante" (de 1973), de que faz parte "A Oficina", Saramago esculpiu essa pequena obra-prima sobre o fazer criativo/ criador.
Já no primeiro parágrafo do texto, Saramago compõe uma rica imagem dessa oficina, que, além de ser "alta como uma caverna", é "sonora como um poço".
Estão apresentados os dotes que transformam a oficina em sala de concerto, em catedral e em vulcão, "e a música abre-se como uma flor rubra e gigantesca debaixo de cujas pétalas curvamos a cabeça".
Essa flor vermelha e imensa é a literatura. Não foi por acaso que Saramago batizou de "A Maior Flor do Mundo" sua única (e brilhante) obra dedicada às crianças.
Mas Saramago diz que as três metáforas com que ele idealiza a oficina do escultor ("sala de concerto" -a harmonia e a elevação da música-, "catedral"-o culto ao trabalho do criador-, e "vulcão" -a ebulição do espirito do criador) não são o trabalho.
O trabalho está em, iniciadas as esculturas ("envolvidas como espectros em telas brancas, em sacos de plástico translúcido que dentro condensam a respiração do barro"), ter o escultor, a um tempo, o gesto delicado e forte -delicado para despir essas esculturas "como a um corpo vivo"; forte (e macio) para esmagar o barro, à procura da linha exata.
Dada a justeza do movimento das mãos, "a massa de argila recria-se pelo lado de dentro e é um rosto sombrio ou aberto, um lábio...".
E as imagens de Saramago para (tentar) traduzir o ofício do escultor continuam. Vão para a folha branca, "vertical e nua como um corpo", seguem pelas figuras que povoam a oficina e desembocam na apoteose: "O escultor circula como habitante único de um país onde só ele cabe e que se move devagar, como uma veia do pulso".
O fato é que a oficina-caverna é o dentro do escultor/ escritor, é o ventre do texto esculpido. Ao mesmo tempo em que nos mostra metalinguisticamente a reflexão sobre um "fazer", é, ele mesmo (texto), algo que se vai fazendo imagem à nossa frente, lugar de habitação em que tudo está em aparente inércia, mas pode, a qualquer momento, fazer-se erupção pela respiração do barro das palavras. Saramago é vida pura.
É isso.

Colaborou JULIANA LOYOLA, professora da PUC-SP


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