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OPINIÃO
Vai-se o escultor das palavras
PASQUALE CIPRO NETO
COLUNISTA DA FOLHA
"A oficina do escultor é alta como uma caverna que esvaziasse uma montanha."
Assim começa "A Oficina
do Escultor". Em seu livro de
crônicas "A Bagagem do Viajante" (de 1973), de que faz
parte "A Oficina", Saramago
esculpiu essa pequena obra-prima sobre o fazer criativo/
criador.
Já no primeiro parágrafo
do texto, Saramago compõe
uma rica imagem dessa oficina, que, além de ser "alta como uma caverna", é "sonora
como um poço".
Estão apresentados os dotes que transformam a oficina em sala de concerto, em
catedral e em vulcão, "e a
música abre-se como uma
flor rubra e gigantesca debaixo de cujas pétalas curvamos
a cabeça".
Essa flor vermelha e imensa é a literatura. Não foi por
acaso que Saramago batizou
de "A Maior Flor do Mundo"
sua única (e brilhante) obra
dedicada às crianças.
Mas Saramago diz que as
três metáforas com que ele
idealiza a oficina do escultor
("sala de concerto" -a harmonia e a elevação da música-, "catedral"-o culto ao
trabalho do criador-, e "vulcão" -a ebulição do espirito
do criador) não são o trabalho.
O trabalho está em, iniciadas as esculturas ("envolvidas como espectros em telas
brancas, em sacos de plástico translúcido que dentro
condensam a respiração do
barro"), ter o escultor, a um
tempo, o gesto delicado e forte -delicado para despir essas esculturas "como a um
corpo vivo"; forte (e macio)
para esmagar o barro, à procura da linha exata.
Dada a justeza do movimento das mãos, "a massa de
argila recria-se pelo lado de
dentro e é um rosto sombrio
ou aberto, um lábio...".
E as imagens de Saramago
para (tentar) traduzir o ofício
do escultor continuam. Vão
para a folha branca, "vertical
e nua como um corpo", seguem pelas figuras que povoam a oficina e desembocam na apoteose: "O escultor
circula como habitante único
de um país onde só ele cabe e
que se move devagar, como
uma veia do pulso".
O fato é que a oficina-caverna é o dentro do escultor/
escritor, é o ventre do texto
esculpido. Ao mesmo tempo
em que nos mostra metalinguisticamente a reflexão sobre um "fazer", é, ele mesmo
(texto), algo que se vai fazendo imagem à nossa frente, lugar de habitação em que tudo
está em aparente inércia,
mas pode, a qualquer momento, fazer-se erupção pela
respiração do barro das palavras. Saramago é vida pura.
É isso.
Colaborou JULIANA LOYOLA, professora da
PUC-SP
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