São Paulo, domingo, 21 de fevereiro de 2010

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Brasileiros soltam a língua

Ficou mais fácil falar de sexo, só que essa "naturalidade" traz também a obsessão com performance, nova medida de todas as coisas

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Se há algo que não varia muito entre diferentes culturas e épocas são as maneiras de fazer sexo: embora o repertório de papéis, posições e parafilias possíveis seja extenso, ele é finito. O que muda bastante é a forma como cada sociedade e cada geração lidam com o sexo: os comportamentos que consideram aceitáveis ou desviantes, o grau de repressão sobre os últimos, a liberdade com que se fala do assunto. Aqui, as possibilidades são quase ilimitadas.
A comparação da mais recente pesquisa Datafolha sobre a sexualidade do brasileiro com sua versão anterior, de 1997, mostra que, ao longo desses 12 anos -um período curto em escala histórica-, não houve grandes reviravoltas. O traço mais marcante é que as pessoas passaram a discutir o sexo com maior desembaraço.
Como mostra o quadro ao lado, houve uma notável queda na proporção dos que se recusaram a responder a alguma pergunta. Um exemplo: em 1997, 23% haviam se negado a revelar com quantos anos tiveram sua primeira relação sexual; em 2009, esse número se reduziu para apenas 4%.
Uma vez que a pesquisa não traz elementos que expliquem tal mudança de comportamento, só se pode especular sobre as suas causas. O principal suspeito é, como quase sempre, a televisão -a um só tempo sintoma e agente multiplicador das novas ideias em circulação.
Ao longo da última década, proliferaram os programas nos quais especialistas secundados por mulheres bonitas (ou vice-versa) respondiam a dúvidas dos telespectadores sobre a sexualidade, que era invariavelmente apresentada sob um prisma higiênico: fazer sexo, desde que devidamente protegido pela doravante indefectível barreira de látex, é bom para a saúde física e mental.
Exceto por duas ou três categorias que permanecem tabu, como a pedofilia e o estupro, todas as modalidades de sexo são retratadas como normais e aceitáveis. No discurso do "establishment", a moral sexual saiu da alçada dos padres para ser decidida pelos médicos ou, nos casos extremos, pelo juiz.
Estamos decerto melhor agora do que antes. E isso é especialmente verdade para mulheres, homossexuais e entusiastas de práticas que não eram muito bem vistas pelos catecismos dos religiosos.
Não dá, entretanto, para imaginar que essa naturalização do discurso sexual ocorra sem consequências. Como mostra muito bem o jornalista e escritor francês Jean-Claude Guillebaud em seu "A Tirania do Prazer", a transformação do sexo em "função orgânica" também converte o prazer numa espécie de obrigação.
Essa "corveia" sexual, para empregar o termo de Guillebaud, quando colocada em paralelo com o caráter quantificante das sociedades de mercado, transforma a performance na medida de todas as coisas.
Essa chave interpretativa ajuda a explicar vários aspectos da pesquisa. Um bom exemplo é o salto de 15% para 41% na fatia dos que alegam que suas relações sexuais duram entre 30 minutos e uma hora. Outro é o aumento de 18 pontos percentuais na proporção dos que afirmam sempre atingir o orgasmo, em que pese a grande diferença observada nas declarações de homens (76%) e mulheres (39%)nesse quesito.
O problema com essa excessiva medicalização do sexo é que ela esconde a importância antropológica de uma moral sexual, qualquer que seja o seu conteúdo. Desde que o ser humano no curso de sua evolução abandonou o ciclo biológico do cio, a cultura substituiu a fisiologia na regulação do sexo. E é no mínimo irrealista imaginar que possamos viver com pouco ou nenhum tipo de limite.


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