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Última fronteira
Um novo bairro, "ecologicamente correto", prevê o desmate de 30% da área; delator do mensalão diz que plano diretor só foi aprovado graças a propina
por FABIO VICTOR
enviado especial a Brasília
Nunca soube que Brasília tinha
esse tanto de cerrado dentro do
Plano Piloto", conversa, ao volante do trator, Benedito de
Oliveira Campos. "Aqui tem
umas cobrinhas invocadas. Ontem matei duas jararacas",
prossegue, enquanto remove
um barranco com pés de mamona, por trás de uma escavação que será mais tarde inundada para virar um lago artificial.
Como há 50 anos, as máquinas rasgam a vegetação tortuosa do Planalto Central para
abrir uma nova fronteira de desenvolvimento, a última possível na área tombada de Brasília.
Não há, na extensão protegida
do Plano Piloto, outro terreno
desse porte (821 hectares de
cerrado virgem, mais de cinco
parques do Ibirapuera) disponível para construção.
Vendido na propaganda do
GDF (Governo do Distrito Federal) como o "primeiro ecobairro do Brasil" (energia solar,
lixo canalizado por pressurização, captação de águas pluviais), o Noroeste surge como
um paradoxo, já que ao menos
30% da vegetação dali será
substituída por prédios.
Mais do que evocar imagens
dos primórdios da capital, a
empreitada espelha a expansão
urbana sem rédeas que viria a
ser seu distintivo. Previsto desde 1987 por Lucio Costa no documento "Brasília Revisitada",
o bairro foi alvo de projetos de
outros governadores, mas só
vingou com José Roberto Arruda e seu vice, Paulo Octávio, cuja empresa é uma das grandes
no setor imobiliário da capital.
Acusado de corrupção, Arruda
foi cassado; Octávio renunciou.
A licença de instalação, sinal
verde para a obras, foi concedida pelo Ibama antes da aprovação do PDOT (o Plano Diretor
do DF) na Câmara Distrital, em
votação que o denunciante do
mensalão do DEM, Durval Barbosa, diz ter sido comprada.
A precedência é o álibi usado
pelo GDF para afirmar que não
há riscos à evolução dos trabalhos, mas não garantiu céu de
brigadeiro. No auge da crise,
aos gritos de "Noroeste, faroeste", manifestantes jogaram legumes podres num estande de
vendas da Paulo Octávio.
A Terracap já vendeu 104 dos
418 lotes, arrecadando R$ 1,3
bilhão dos R$ 4 bilhões que estima receber. A Paulo Octávio
comprou, só ou com parceiros,
sete lotes, por R$ 15 milhões cada, em média. O retorno é certo: o metro quadrado do imóvel
custa de R$ 8.000 a R$ 12.000,
um dos mais caros do país.
Se de fato a ameaça ao PDOT,
cuja anulação é pedida pelo Ministério Público, não for obstáculo ao Noroeste, há outros no
caminho. Índios, por exemplo.
Cerca de 20 fulniôs, kariris-xocós e tuxás dizem viver há
pelo menos 40 anos numa área
do futuro bairro. Acionada pelo
Ministério Público, a Justiça
concedeu liminar proibindo a
Terracap de realizar obras no
espaço até que a Funai conclua
um laudo sobre a comunidade.
A Terracap trata os índios como invasores. Propôs instalá-los em outras áreas e afirma
não ter tido resposta. Na entrada do espaço onde vivem, uma
placa atirada ao mato informa:
"Área indígena - Não se aproxime - Guerra - Peligro".
Para chegar ao chamado
"santuário dos pajés" há outra
porteira. Lá dentro, o fulniô
Cláudio Gomes Inácio, 41, empregado de uma firma que
presta serviço à Funai, mora
numa oca de bambu e palha
com a mulher e dois filhos.
Quando a reportagem esteve
no local, ele acabara de chegar
de Pernambuco com uma Saveiro abarrotada de artesanato
fulniô para vender na capital.
Cláudio integra um dos grupos
que moram ali. O outro, não reconhecido como indígena pelo
primeiro, pediu indenização de
R$ 74,8 milhões para sair, segundo a Terracap, que rejeitou.
Em outra frente, o Ministério Público do DF questiona o
cumprimento de condicionantes da licença concedida pelo
Ibama. A Terracap diz que faz
tudo conforme as exigências.
Alheio à disputa, Benedito
Campos vai matando suas "cobrinhas invocadas". Cearense
de Frecheirinhas, o operador
de máquinas de 59 anos chegou
a Brasília em 1975 e especializou-se em desmatar e terraplanar. Desbravou a Asa Norte, fez
obras em Gama e Sobradinho.
Preparar o novo oásis da classe
média alta é um passo natural.
Mora de aluguel em Candangolândia, nas franjas da capital,
e encarna as distorções da ocupação do lugar com maior renda per capita e maior desigualdade do país. "Tô pelejando para ver se pego um financiamento de uma casinha lá no Goiás,
porque em Brasília não dá. Eu
bem que queria, gosto muito
daqui, mas é muito caro."
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