São Paulo, quarta-feira, 21 de abril de 2010

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Última fronteira

Um novo bairro, "ecologicamente correto", prevê o desmate de 30% da área; delator do mensalão diz que plano diretor só foi aprovado graças a propina

por FABIO VICTOR
enviado especial a Brasília

Nunca soube que Brasília tinha esse tanto de cerrado dentro do Plano Piloto", conversa, ao volante do trator, Benedito de Oliveira Campos. "Aqui tem umas cobrinhas invocadas. Ontem matei duas jararacas", prossegue, enquanto remove um barranco com pés de mamona, por trás de uma escavação que será mais tarde inundada para virar um lago artificial.
Como há 50 anos, as máquinas rasgam a vegetação tortuosa do Planalto Central para abrir uma nova fronteira de desenvolvimento, a última possível na área tombada de Brasília. Não há, na extensão protegida do Plano Piloto, outro terreno desse porte (821 hectares de cerrado virgem, mais de cinco parques do Ibirapuera) disponível para construção.
Vendido na propaganda do GDF (Governo do Distrito Federal) como o "primeiro ecobairro do Brasil" (energia solar, lixo canalizado por pressurização, captação de águas pluviais), o Noroeste surge como um paradoxo, já que ao menos 30% da vegetação dali será substituída por prédios.
Mais do que evocar imagens dos primórdios da capital, a empreitada espelha a expansão urbana sem rédeas que viria a ser seu distintivo. Previsto desde 1987 por Lucio Costa no documento "Brasília Revisitada", o bairro foi alvo de projetos de outros governadores, mas só vingou com José Roberto Arruda e seu vice, Paulo Octávio, cuja empresa é uma das grandes no setor imobiliário da capital. Acusado de corrupção, Arruda foi cassado; Octávio renunciou.
A licença de instalação, sinal verde para a obras, foi concedida pelo Ibama antes da aprovação do PDOT (o Plano Diretor do DF) na Câmara Distrital, em votação que o denunciante do mensalão do DEM, Durval Barbosa, diz ter sido comprada.
A precedência é o álibi usado pelo GDF para afirmar que não há riscos à evolução dos trabalhos, mas não garantiu céu de brigadeiro. No auge da crise, aos gritos de "Noroeste, faroeste", manifestantes jogaram legumes podres num estande de vendas da Paulo Octávio.
A Terracap já vendeu 104 dos 418 lotes, arrecadando R$ 1,3 bilhão dos R$ 4 bilhões que estima receber. A Paulo Octávio comprou, só ou com parceiros, sete lotes, por R$ 15 milhões cada, em média. O retorno é certo: o metro quadrado do imóvel custa de R$ 8.000 a R$ 12.000, um dos mais caros do país.
Se de fato a ameaça ao PDOT, cuja anulação é pedida pelo Ministério Público, não for obstáculo ao Noroeste, há outros no caminho. Índios, por exemplo.
Cerca de 20 fulniôs, kariris-xocós e tuxás dizem viver há pelo menos 40 anos numa área do futuro bairro. Acionada pelo Ministério Público, a Justiça concedeu liminar proibindo a Terracap de realizar obras no espaço até que a Funai conclua um laudo sobre a comunidade.
A Terracap trata os índios como invasores. Propôs instalá-los em outras áreas e afirma não ter tido resposta. Na entrada do espaço onde vivem, uma placa atirada ao mato informa: "Área indígena - Não se aproxime - Guerra - Peligro".
Para chegar ao chamado "santuário dos pajés" há outra porteira. Lá dentro, o fulniô Cláudio Gomes Inácio, 41, empregado de uma firma que presta serviço à Funai, mora numa oca de bambu e palha com a mulher e dois filhos. Quando a reportagem esteve no local, ele acabara de chegar de Pernambuco com uma Saveiro abarrotada de artesanato fulniô para vender na capital. Cláudio integra um dos grupos que moram ali. O outro, não reconhecido como indígena pelo primeiro, pediu indenização de R$ 74,8 milhões para sair, segundo a Terracap, que rejeitou.
Em outra frente, o Ministério Público do DF questiona o cumprimento de condicionantes da licença concedida pelo Ibama. A Terracap diz que faz tudo conforme as exigências.
Alheio à disputa, Benedito Campos vai matando suas "cobrinhas invocadas". Cearense de Frecheirinhas, o operador de máquinas de 59 anos chegou a Brasília em 1975 e especializou-se em desmatar e terraplanar. Desbravou a Asa Norte, fez obras em Gama e Sobradinho. Preparar o novo oásis da classe média alta é um passo natural.
Mora de aluguel em Candangolândia, nas franjas da capital, e encarna as distorções da ocupação do lugar com maior renda per capita e maior desigualdade do país. "Tô pelejando para ver se pego um financiamento de uma casinha lá no Goiás, porque em Brasília não dá. Eu bem que queria, gosto muito daqui, mas é muito caro."


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