São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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RAÍZES

No interior de Alagoas, parentes se enfrentam à bala; uma facção se apóia na Polícia Militar, a outra, nas próprias armas

O duelo do "sim" e do "não" na terra do homem cordial

LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A MINADOR DO NEGRÃO (AL)

Da pesquisa Datafolha divulgada ontem, emerge uma única macrorregião em que a maioria da população é favorável à proibição do comércio de armas e munição -o Nordeste, onde 53% dos entrevistados disseram apoiar o "sim" (voto 2).
Como se fosse o último refúgio do homem cordial de que falava o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, para definir o traço típico do brasileiro generoso e hospitaleiro no trato, o Nordeste contrasta com os Estados do Sul, onde apenas 19% dos entrevistados manifestaram intenção de votar no "sim", contra 81% no "não".
Em busca desse tal homem cordial, a reportagem da Folha foi até o município de Minador do Negrão, sertão alagoano, 169 quilômetros de Maceió, 6 mil almas, 3.500 eleitores.
Ex-distrito de Palmeira dos Índios, cidade que foi governada pelo escritor Graciliano Ramos entre 1928 e 1930, Minador do Negrão esteve na rota do bando do cangaceiro Lampião e das volantes repressoras (tropas policiais). Lá também foi filmada parte do filme "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos (1963), inspirado no livro de Graciliano.
Hoje, a cidade é berço de famosos corredores de vaquejadas, esporte de valentões, capazes de derrubar um boi em plena corrida, puxando-o pelo rabo.

Emboscada
A cordialidade começou a vazar pelos 154 furos de bala na carroceria da camionete Nissan Frontier preta, que levava o deputado estadual Cícero Paes Ferro (PMDB) a sua fazenda, em companhia do primo José Maria Ferro. Outros 31 tiros cravejaram o muro da Escola Estadual Belarmino Vieira de Barros, a maior da cidade. Oito balaços se enfiaram no corpo do deputado. Um fraturou-lhe a perna esquerda, outro passeou pela cabeça e saiu pela sobrancelha, um terceiro destruiu parcialmente a arcada dentária inferior. Ao todo, foram 193 disparos.
O deputado sobreviveu e denunciou o próprio primo, o fazendeiro José Nilton Cardoso Ferro, por tentativa de homicídio. Segundo Cícero, José Nilton estava acompanhado, na emboscada, pelos filhos, Waldeck, Wagner e Wanderley e por outros oito capangas -todos foragidos desde o crime, em 31 de janeiro de 2004.
Os acusados defendem-se por intermédio de seus advogados, alegando que os disparos foram em legítima defesa, que o deputado atacou primeiro.
Desde o confronto, os primos acusados já registraram dois assassinatos em suas fileiras: Ednilson Teixeira, agricultor, morreu com 18 tiros em 15 de outubro de 2004. Segundo a mãe, Lourdes, "porque era muito camaradeiro e amigo dos filhos do José Nilton".
Outro cadáver foi o do cunhado de José Nilton, o pecuarista Jacó Cardoso Ferro, assassinado no dia 28 de janeiro deste ano, menos de 24 horas após a libertação de um segurança de Cícero Ferro, preso com uma pistola 9 milímetros sem registro.
A guerra dos Ferros, espécie de nobreza local, é por poder e prestígio. A prefeitura é o maior empregador do lugar, com 550 postos de trabalho diretos. A influência cresce graças aos programas de transferência de renda do governo federal, gerenciados em parceria com as prefeituras.
Minador do Negrão tinha, em novembro de 2004, 663 famílias cadastradas no bolsa-família, 217 no bolsa-escola, 317 no auxílio-gás, entre outros programas.
O prefeito atual de Minador, José Emílio Tenório Barros (PSB), é aliado de José Nilton, a quem chama de "pai da pobreza", uma construção ambígua.
Há um mês, o deputado foi depor contra os primos no Fórum da comarca de Cacimbinhas, cidade próxima.
Sob sol do meio-dia, em pleno verão sertanejo (a primavera inexiste), temperaturas na marca de 42C, Cícero Ferro chegou à construção azulada com colunas decorativas ("quase um edifício romano clássico", diz um morador) protegido por oito carros da PM, policiais de metralhadoras.
Desde que se tornou deputado, Cícero requisita a proteção da PM em suas andanças pelo Estado. Agora, pós-atentado, a proteção foi reforçada. Ele é favorável ao "sim" no referendo.
Os partidários de José Nilton são pelo "não". "Se não pudermos ter nossas próprias armas, quem vai nos proteger?", pergunta Nadja Cardoso Ferro, 25, atual chefe do setor de pessoal da prefeitura e filha de Jacó.
Há oito meses juiz titular da região de Minador, Claudemiro Avelino, 44, chegou à região logo depois do assassinato de Jacó.
Lembra ele: "O clima era tão tenso, que os alunos saíam correndo da escola para casa. Ninguém ficava nas ruas."
"Mobilizamos as polícias civil e militar, vistoriamos mais de cem fazendas e apreendemos apenas 30 armas, a maioria espingardas e pistolas velhas. Não deu certo."
Três caseiros disseram à Folha que, quando os policiais chegavam às casas, as armas já tinham sido enterradas, estratégia à la Saddam Hussein. Em uma fazenda, um funcionário admitiu ter enterrado tantas armas "que daria para encher um caminhão".
Na sede da prefeitura, um grande letreiro pintado na parede diz: "Quando Deus Quer É Assim." A guerra, parece, continua.


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