São Paulo, sábado, 24 de janeiro de 2004

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É possível evitar escassez de água sem elevar tarifa?

Com demanda crescente e oferta limitada na região, valorização futura é inevitável; para afastar o risco de desabastecimento, é preciso mudar hábitos de consumo

MARIANA VIVEIROS
ISABELLE MOREIRA LIMA
DA REPORTAGEM LOCAL

No futuro, os moradores de São Paulo certamente terão de pagar mais pela água. A previsão é unanimidade entre especialistas em recursos hídricos e representantes do poder público.
A elevação do custo será o resultado de uma equação na qual aparecem como variáveis essenciais a proteção dos mananciais atualmente em uso, a redução do desperdício por parte de consumidores domésticos, industriais e agrícolas, a diminuição das perdas na rede de abastecimento, o quão longe será preciso ir para conseguir novas fontes e com quem elas terão de ser disputadas.
E não adianta culpar só o padre Anchieta pela infeliz escolha do local onde construiu o colégio que deu origem a São Paulo -a nascente dos rios formadores da bacia do Alto Tietê, onde a disponibilidade de água é menor do que na foz. Outras duas razões fundamentais para que se tenha hoje uma situação já crítica do abastecimento público (para não falar na degradação dos rios e represas) são o contínuo crescimento da cidade sem planejamento nem controle e, do ponto de vista da oferta, a histórica primazia ao uso energético dos corpos d"água.
Por um lado, "a expansão urbana desordenada, apesar da existência de planos que nunca saíram do papel, se deu em conseqüência da confluência da migração, motivada pela industrialização e pelo crescimento econômico, com a falta de recursos, omissão, descaso e corrupção dos órgãos públicos de controle", afirma Pedro Roberto Jacobi, vice-presidente do Procam (Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental, da USP), que coordena uma radiografia dos comitês de bacia de São Paulo.
Por outro lado, a prioridade da geração de energia em detrimento do abastecimento público "remeteu a segundo plano a manutenção e recuperação da qualidade da água, inclusive tratamento de esgoto", completa Ricardo Toledo da Silva, diretor da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP) e um dos autores do Plano de Bacia do Alto Tietê.
Ele lembra que a represa Guarapiranga teve como função original regularizar a vazão do rio Pinheiros para geração de energia, a Billings foi projetada para possibilitar a operação da usina Henry Borden, em Cubatão, e até mesmo a reversão de água da bacia do rio Piracicaba, pelo sistema Cantareira, foi motivada prioritariamente pela geração energética.
Nos últimos dez anos, outro problema se somou aos já existentes: a expulsão acelerada de moradores para áreas periféricas pela impossibilidade de custear a moradia no centro da cidade, diz Mônica Porto, professora do Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária da Escola Politécnica da USP e co-autora do Plano de Bacia do Alto Tietê.
O "efeito perverso" do processo é que as pessoas de baixa renda acabam em regiões onde não existe infra-estrutura sanitária, fazendo com que a empresa de saneamento, a Sabesp, tenha de investir mais pra levar água até lá. E como essas pessoas consomem pouca água e têm uma tarifa diferenciada (social), "rendem" pouco para a Sabesp. "Ou seja, não há como pagar o investimento", completa Rubem La Laina Porto, professor do mesmo departamento.
A falência da Lei de Proteção de Mananciais, de 1975, que impedia a ocupação das áreas de produção de água -e que, para alguns, teve o efeito contrário, estimulando o loteamento clandestino de terrenos que perderam totalmente seu valor econômico- se reflete em números. As margens da Guarapiranga e da Billings têm, juntas, cerca de 1,5 milhão de habitantes. Na região do sistema Cantareira, o total é de pouco mais de 100 mil pessoas.

Cenários futuros

É difícil fazer futurologia sobre o abastecimento de água -La Laina Porto lembra que previsões anteriores falharam porque estimavam um crescimento demográfico muito maior do que o ocorrido-, mas o Plano de Bacia do Alto Tietê trabalha com dois cenários possíveis para 2010.
Se a situação evoluir mais ou menos como hoje (tendencial), estima-se que a demanda por água crescerá na Grande São Paulo de 64 mil (em 2000) para 78,6 mil litros por segundo (em 2010).
Num cenário induzido, em que ações de gerenciamento de demanda seriam colocadas em prática (controle de urbanização, introdução de tecnologias poupadoras de água etc.), o aumento do consumo fica 60% menor, indo dos mesmos 64 mil para 69,8 mil litros por segundo em 2010.
O quadro atual é o seguinte: a demanda na região metropolitana é de cerca de 68 mil litros por segundo e já está acima do que previa o cenário induzido (66 mil litros por segundo). O gasto, porém, se mantém ligeiramente abaixo do que previa o cenário tendencial (69 mil litros por segundo). De qualquer forma, a Grande São Paulo não segue o caminho certo, e a situação é vista por Silva como preocupante.
A produção de água hoje fica exatamente em torno de 68 mil litros por segundo e não há como aumentá-la, senão por obras e pelo uso de novos mananciais. O que pode parecer um equilíbrio é, na verdade, um risco por causa da grande dependência em relação a fenômenos naturais não-controláveis como chuva e calor.
"Se eu pego dois anos ruins, como 2001, 2002, e um 2003 ainda muito pior, o reservatório não resiste e ocorre a crise", diz La Laina Porto. E, mesmo sem a necessidade de um grande racionamento, sistemas como o Cantareira não vêm conseguindo mais encher durante o período chuvoso, daí a tendência de que as crises se tornem cada vez mais freqüentes e graves, sustenta Jacobi.
O próximo Plano Diretor de Águas da Sabesp prevê algumas alternativas, das quais as mais viáveis são o represamento do rio Capivari-Monos, no extremo sul da capital, e a captação no rio Juquiá, em Juquitiba (Grande SP). As outras opções são, da mais para a menos exequível, trazer água das represas de Paraibuna (a cerca de 120 km de SP) e reverter o rio São Lourenço (de São Lourenço da Serra, na Grande SP).
Todas elas, porém, envolvem custos, problemas ambientais e disputa com outros usuários.

Medidas não-estruturais
Embora as obras sejam necessárias, os especialistas são unânimes em considerá-las insuficientes.
Eles insistem ser fundamental a adoção de medidas não-estruturais: troca de equipamentos hidráulicos por modelos que consomem menos, cobrança pelo uso da água, reúso, controle da urbanização e da ocupação dos mananciais em nível metropolitano, associada a políticas de habitação popular e de compensação financeira a cidades que preservarem suas regiões de produção de água.
Elas não vão evitar o aumento do preço -podem até contribuir para isso-, mas protegerão paulistanos e vizinhos de um cenário ainda pior de escassez, má qualidade da água e custos igualmente altos. Colocar tais medidas em prática é o maior desafio.
Há resistências políticas à cobrança pela água (o secretário de recursos hídricos do Estado, Mauro Arce, por exemplo, é contra); não há sinal de campanhas nem ações do poder público para motivar a troca de bacias sanitárias e válvulas de descarga; a perspectiva de urbanizar as ocupações dos mananciais não contempla o seu congelamento; falta ainda um longo caminho para a criação de uma infra-estrutura institucional que possibilite a disseminação do reúso de água, mesmo para fins não nobres, afirma Ivanildo Hespanhol, professor da Escola Politécnica da USP e presidente do Centro Internacional de Referência em Reúso de Água.
E a decisão da Prefeitura de São Paulo de tomar da Sabesp o controle do saneamento na capital não terá muito efeito na solução da equação, já que não há como trabalhar a questão fora do enfoque metropolitano, dizem Porto, Silva, Jacobi e La Laina Porto.

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