São Paulo, domingo, 27 de maio de 2001

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A EXPEDIÇÃO

Na selva, macaco é relógio e anta é banquete

Flávio Florido/Folha Imagem
O chefe da expedição, Sydney Possuelo, mostra aos canamaris uma fotografia de revelação instantânea com imagem da tribo, logo após o contato com os índios


DO ENVIADO ESPECIAL AO AMAZONAS

Eram 4h10 da manhã quando a luz de uma lanterna me acordou. Vi um índio ornamentado com conchas de caramujo no nariz que procurava algo perto da rede onde eu dormia.
"O que foi Kuini, é uma cobra?", perguntei ao índio da tribo dos matis que havia sido contratado como um dos guias da expedição. "Campu, campu", ele me respondeu, referindo-se a um sapo venenoso usado em rituais dos matis.
Ato seguinte: Kuini Matis passou a imitar o coaxar do tal sapo. O sapo respondeu alguns metros adiante, e o índio foi atrás. Voltei a dormir como se nada tivesse acontecido.
Quando você acha normal ser acordado no meio da madrugada por um índio que imita um sapo é porque a sua vida virou de cabeça para baixo.
Foram 43 dias de vida pelo avesso. Acompanhar a expedição da Funai foi a experiência mais intimidante da minha carreira e da do fotógrafo Flávio Florido. Não pelos perigos inerentes de atravessar um pedaço desconhecido da Amazônia, mas pela obrigação de se adaptar a um cotidiano completamente diferente.
Tomar banho, por exemplo. Para começar, entravamos no igarapé com a água apenas até o calcanhar. Se tentássemos ir mais fundo, poderíamos ser atacados por uma arraia ou uma piranha. Duvidamos no início, mas mudamos rapidamente de idéia depois que o próprio Flávio pescou 19 piranhas em um dos rios.
Com tão pouca mobilidade, o banho é feito com canecas - as mesmas usadas para tomar café ou suco de açaí.
Mas as piranhas estão entre os menores risco da fauna local. O mesmo vale para as cinco cobras venenosas mortas nos acampamentos e trilhas. Muito mais enervantes são os insetos. Contávamos às centenas as marcas de picadas, apesar de nos besuntarmos com repelente várias vezes ao dia. Como seria previsível, a nossa hora do banho era um festim para os mosquitos.
Nos 25 dias que passamos acampados na floresta, acordávamos pouco depois das 5h com o barulho dos macacos. Tomávamos um café com leite condensado dissolvido em água. Antes das 8h, eram servidas as sobras da noite anterior - arroz com ensopado de ave nos dias bons; arroz com carne enlatada nos ruins.
Nosso grupo de novatos -chamados carinhosamente de "estorvos"- deixava o acampamento por volta das 9h, depois que a equipe do sertanista Sydney Possuelo já havia aberto quilômetros de trilhas na floresta. Desacostumados com exercícios, meus pés viraram feridas com pus.
A região que atravessamos era de serra, o que na prática significou passar de seis a sete horas diárias subindo e descendo montes numa versão tropical do mito grego de Sísifo. Pelo menos a pedra havia sido substituída por uma mochila de 15 kg.
Apesar de carregarem 30 kg nas costas, os índios chegavam ao local escolhido para o novo acampamento com horas de vantagem sobre os "estorvos". Era o tempo que gastavam para caçar o jantar: na maioria das vezes matavam porcos-do-mato, como queixadas e caititus; noutras, encontraram aves, como mutuns e jacus; e, uma saborosa e única vez, conseguiram uma anta.
Nesse ritmo, acampar exige o aprendizado de algumas inesperadas técnicas de bem-estar. A principal delas era achar forquilhas, o galho bifurcado de um árvore. Para montar a rede, são necessárias pelo menos duas forquilhas e um terceiro galho de árvore para atar os nós e ganchos.
Quem tentasse (como eu, no primeiro dia) atar a rede a duas árvores acordava no meia da noite ensopado pela água que desce pelas cordas. Aliás, não é por acaso que a mata da Amazônia se chama floresta tropical úmida. Chovia quase todas as noites.
Foi numa delas que os matis prepararam um estranho ritual. Amarraram um sapo sobre uma brasa até que dele saíssem toxinas, que eles guardavam em espinhos de palmeiras. A intenção era aplicar esses espinhos "envenenados" no corpo para ter sonhos comandados pelos espíritos.
Acostumados à presunção de independência de repórteres, tivemos de seguir ordens sem discutir. Afinal, nosso conhecimento de sobrevivência na selva de São Paulo não servia para nada no coração da Amazônia.
Por ironia, cada vez que avançamos no território dos índios isolados, menos contatos tínhamos com o resto do mundo. Nos barcos, o aparelho de telefone celular via satélite funcionava precariamente, mas na mata tivemos de nos habituar à nossa companhia. Flávio criou uma rádio fictícia, a Jandiatuba, que se tornou o ponto de harmonia entre sertanistas, índios e "estorvos". Tinha até slogan: "rádio Jandiatuba, eu preferia estar em Ubatuba". Era música toda noite - ou seja, até as 20h, o horário de dormir.
Outra adaptação obrigatória foi com o trabalho da Funai. A intenção da expedição nunca foi a de contatar os índios isolados - encontrar os djapás foi um acaso. Mas, no íntimo, eu torcia por um desses encontros históricos. Coisa de repórter. Também era difícil entender que a falta de vestígios, como pontas de flechas e cerâmica, podia ser um traço dos índios isolados. Seria sinal de que esses índios estavam se cuidando para não deixar rastros, com medo de serem seguidos.
O que não nos mata, nos torna mais fortes. E adaptáveis. Voltamos a São Paulo a tempo de experimentar o apagão. Pelo menos já sabemos como é tomar banho de água fria todos os dias.


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