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São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 2003

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transporte

Cidade sonha com metrô desde 1906, mas o século 20 foi dos automóveis

Tuca Vieira/Folha Imagem
Tarde de trânsito intenso no elevado Costa e Silva, o Minhocão



No começo do século 20, os raros automóveis que circulavam em São Paulo não podiam ultrapassar a velocidade de 17 km/h nas ruas centrais


ALENCAR IZIDORO
DA REPORTAGEM LOCAL

Os subterrâneos e as linhas de alta velocidade constituem a solução do problema do tráfego em São Paulo."
Essa frase, dita hoje, seria apenas uma obviedade, num período em que os paulistanos reivindicam mais quilômetros de metrô como uma alternativa à utilização do automóvel e para reduzir os congestionamentos.
Em 1927, quando ela foi escrita, acabou desdenhada por políticos e técnicos. A sugestão da Light, concessionária dos serviços de bonde e de energia elétrica desde os primeiros anos do século 20, era construir três linhas de metrô em parceria com a prefeitura. Esse modelo de transporte não era novidade no mundo: já existia em Londres desde 1863 e na vizinha Buenos Aires desde 1913.
Mas São Paulo deixou a opção para trás: a Câmara Municipal rejeitou a proposta da Light. A primeira linha subterrânea sobre trilhos do município se tornou realidade apenas depois de praticamente meio século, em 1974, quando a cultura da indústria automobilística já estava enraizada.

Opção por pneus
A rejeição ao metrô -que hoje tem 57,6 km, contra 567 km em Paris- não foi a única contribuição da década de 1920 para a atual situação de ruas entupidas de carros e de má qualidade das conduções coletivas.
Foi naquele tempo que começou a tomar consistência a opção de São Paulo pelos veículos sobre pneus. Os primeiros ônibus, que depois iriam substituir definitivamente os bondes, surgiram em 1925, guiados por motoristas autônomos, sem ordenamento.
O crescimento dos bairros, até então orientado e limitado pelos trilhos, passaria a ter a mobilidade dos ônibus -expandindo-se para a periferia. Esses veículos, que tiveram suas regras regulamentadas só em 1934, também reforçariam a implantação do Plano de Avenidas, de 1930, elaborado pelo engenheiro Prestes Maia. O plano, embora previsse a existência de metrô, serviria de roteiro para as obras viárias de São Paulo nas décadas seguintes.
O carro, nesse período, ainda era um bem de luxo, restrito aos mais ricos das classes mais altas. A relação bonde/progresso já não estava mais na moda: com a tarifa congelada desde 1909, o bonde vivia superlotado, sem receber novos investimentos.
Antes de pensar em metrô e até mesmo em bonde, São Paulo levou mais de três séculos, desde a sua fundação, para ter as primeiras formas organizadas de transporte. O calçamento das ruas começou apenas no século 18, e os deslocamentos se davam a pé, em cavalos de aluguel, cadeirinhas e nos lombos dos burros.
As mudanças coincidiram com a vinda de imigrantes. Em 1865, enquanto os ingleses preparavam a linha de trem entre Santos e Jundiaí, o italiano Donato Severino publicava um anúncio em jornais oferecendo na Sé, pela primeira vez, serviço de transporte regular: os tílburis, carros de duas rodas e dois assentos, com capota, puxados por um animal.
A primeira linha de bonde puxado a burro surgiu em 1872. A dificuldade para subir as ladeiras foi superada com os veículos motorizados. Os primeiros automóveis apareceram em 1893. No último ano do século 19 havia quatro deles registrados na cidade.
A população ainda saía à janela para vê-los passar quando foi publicada a primeira regulamentação sobre a circulação de automóveis, em 1903. Ela dizia: "Nos lugares estreitos onde haja acúmulo de pessoas, a velocidade será a de um homem a passo. Em caso algum poderá a velocidade ir além de 30 km/h em campo raso, de 20 km/h nos pontos habitados e de 17 km/h nas ruas centrais".
O sonho de uma ampla rede metroviária para facilitar as viagens, embora tenha sido detalhado e amplamente discutido apenas em 1927, chegou a ser citado ainda antes, em 1906, quando Felipe Antonio Gonçalves sugeriu uma estrada de ferro circular -e, pela primeira vez, falava na utilização do subsolo, com um túnel sob a avenida Paulista. A idéia também foi rejeitada e criticada por políticos.
O transporte responsável pela maioria dos deslocamentos na primeira metade do século 20 -os bondes elétricos- começou a funcionar em 1900, a cargo da Light, numa linha que ia do largo São Bento até a Barra Funda.
A tarifa do bonde ficou congelada durante quase quatro décadas -de 1909 a 1947. A Light manifestou sua insatisfação já na década de 1920. Na de 1930, a situação chegou ao extremo de a companhia pedir a desistência da concessão, que acabaria em 1941. A solicitação foi negada e, em razão da Segunda Guerra Mundial e da falta de petróleo, ainda foi prorrogada até 1945.
Em 1947, a CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos) foi criada para assumir os serviços de bondes e encampar as empresas de ônibus privadas. De imediato, aumentou o preço da passagem -medida que provocou um quebra-quebra naquela que provavelmente foi a maior revolta dos usuários na história de São Paulo.
O reajuste da passagem trouxe veículos novos, ajudou a implementação dos trólebus, mas não estancou a crise -ainda surgiam caminhões utilizados como paus-de-arara no transporte.

Ônibus e caos
A CMTC acentuou a fase de substituição dos bondes pelos ônibus. A tentativa da empresa municipal de manter tudo sob seu controle fracassou, permitindo a entrada desordenada das viações, a ponto de, em 1961, a CMTC controlar apenas 25% do sistema. Essa situação caótica ainda abriu espaço ao transporte individual, coincidente com a implantação da indústria automobilística no final dos anos 50.
Os trilhos dos bondes, nesse contexto, eram vistos como um empecilho à circulação dos carros. Em 1968, os bondes fizeram sua última viagem, na gestão do prefeito Faria Lima, famoso por ter participado da construção de importantes avenidas (as marginais Tietê e Pinheiros e a 23 de Maio, além do alargamento da Rebouças) e por ter sacramentado a cultura do automóvel -embora tenha começado também as obras da primeira linha de metrô.
Em 1967, as viagens motorizadas por transporte individual representavam 32% do total. Hoje, passam de 50%.
Os efeitos da prioridade à circulação de carros foram parcialmente freados pela inauguração da rede metroviária e pela criação da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), em 1976, visando organizar a fluidez do trânsito.
A "bomba" explodiu nos anos 90, quando a média de lentidão aferida pela CET saltou da casa dos 40 km para mais de 120 km em apenas dez anos. Em 1996, a capital paulista se viu obrigada a adotar o rodízio de veículos -inicialmente para combater a poluição e, em seguida, para favorecer o tráfego.
Em resposta à falta de agilidade no trânsito, surgiu o fenômeno da multiplicação das motocicletas. O número desses veículos cresceu 50% nos últimos seis anos, principalmente por conta dos serviços de entrega, conhecidos como motoboys, que andam em alta velocidade nos vãos entre os carros.
Atualmente, mais de um motociclista morre todos os dias em São Paulo.


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