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São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 2003

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moradia

Da fundação ao século 21, a habitação rudimentar persiste na expansão urbana


A escassez estava presente nos primórdios da cidade. Materiais de construção eram limitados -as casas eram erguidas com terra argilosa socada. A cafeicultura trouxe riqueza e mudança no padrão residencial da classe média e da classe alta. A explosão populacional no final do século 19 veio acompanhada do problema da morada dos mais pobres


DA REDAÇÃO

A São Paulo de hoje guarda uma semelhança incômoda com a cidade primitiva. A casa popular autoconstruída do século 21 evoca na sua rudeza o que o padre Anchieta descreveu como a primeira morada dos jesuítas, "barro e paus, coberta de palha" -hoje paus, lajotas, latas, o que houver.
Como no século 16, a natureza é afrontada nos dias de hoje por uma questão de sobrevivência. Habitações precárias, construídas com recursos limitados, ocupam áreas de proteção ambiental.
A escassez também estava presente nos primórdios da cidade. Materiais de construção eram limitados nos Campos de Piratininga em que São Paulo foi fundada. Não havia jazidas de carbonato de cálcio para a produção da cal -essencial para as alvenarias. Não havia pedras. A madeira utilizada nos telhados e nas esquadrias era obtida com dificuldade.
A falta de árvores adequadas à construção fez com que Morgado de Mateus, governador da Capitania de São Paulo na segunda metade do século 18, cogitasse a criação de um horto para cultivá-las, conforme conta Carlos Lemos, professor titular de história da arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (Universidade de São Paulo) e autor do livro "Casa Paulista".
A técnica da taipa de pilão caracterizou a arquitetura de São Paulo até a segunda metade do século 19. Para levantar as habitações, eram usadas pranchas dispostas paralelamente, afastadas entre si conforme a espessura desejada da parede. A terra argilosa era socada entre os pranchões, removidos ao fim dos trabalhos.
A moradia urbana colonial era rústica. Havia a separação clara entre a área íntima e a de contato público -uma influência árabe de reclusão da família vinda do sul de Portugal, explica Lemos. O contato com os de fora se dava na sala da frente, de janela para a rua.
Essa forma de habitação só iria mudar com o ciclo do café -a capital se enriquece e passa a receber a mão-de-obra imigrante. Por volta de 1867, ano em que se instalou a ferrovia Santos-Jundiaí, os pedreiros europeus -primeiro os alemães e depois os italianos- começam a difundir a alvenaria. A produção de tijolos se dá em olarias nas margens do Tietê -de onde também era extraída a areia.
As telhas côncavas, utilizadas desde o período colonial, são substituídas pelas planas, ditas de Marselha. Lemos relata que a primeira fábrica dessas telhas em São Paulo foi a dos irmãos Saccoman, no atual distrito Sacomã.
Os navios que chegavam a Santos para embarcar café traziam material de construção barato. Cimento, pedras e canos serviam de lastro na travessia oceânica.
A Companhia Cantareira, criada em 1877, iria implementar os serviços de água e esgoto. A classe média e a classe alta começam a "morar à francesa". A área de intermediação entre o público e o privado se estende, como a sala de jantar própria para receber convidados. As casas são divididas em áreas de estar, de serviço e de repouso -com esta última ala geralmente no andar superior. É introduzido o hall, que possibilita o trânsito de uma área à outra sem passar pela terceira.
A combinação de estilos, o chamado ecletismo arquitetônico, predomina nas construções a partir do final do século 19. É nesse contexto que surgem os bairros de ricos -Campos Elíseos (1879), Higienópolis (1890) e a avenida Paulista (1891). Começa-se a desenhar uma geografia que se completaria com os loteamentos da Companhia City, no Pacaembu e nos Jardins, explica a secretária nacional de Programas Urbanos, Raquel Rolnik. O eixo centro-sudoeste, mais bem servido de serviços, é habitado pelos mais ricos, o que persiste até hoje.

Cortiços e loteamentos
A explosão populacional ocorrida no final do século 19 veio acompanhada do problema da moradia popular. Em 1872, eram apenas 31,4 mil habitantes na cidade; em 1900, 240 mil.
Ocorreu a multiplicação dos cortiços na capital. As condições insalubres dessas habitações -cômodos pequenos, sem água e esgoto, com infiltrações- era fator de proliferação de doenças.
Os cortiços criavam uma situação de desconforto também para a elite, pois se estabeleciam proximamente aos bairros ricos.
A partir de 1886, há a proibição dos cortiços na região central -seriam construídas vilas operárias "higiênicas" fora do centro.
Paralelamente à criação dos bairros ricos, consolidam-se então os bairros fabris -Mooca, Brás, Pari, por exemplo.
Na República Velha (1889-1930), os pobres pagavam aluguel em cortiços e em vilas operárias, como conta Nabil Bonduki, 48, vereador (PT) e autor de "Origens da Habitação Social no Brasil".
Nos anos 30, a disseminação do ônibus como meio de transporte facilita a criação de loteamentos na periferia e a autoconstrução. Essa ocupação se dá, em grande parte, de forma irregular.
Bonduki ressalta duas mudanças legais -ocorridas no final dos anos 30 e no começo dos 40- que contribuíram para a mudança de padrão de expansão habitacional. A regulamentação da venda de lotes -o vendedor não poderia mais devolver as prestações pagas e retomar o imóvel- estimulou a compra de terrenos. A Lei do Inquilinato, por sua vez, teve o efeito de inibir o investimento em imóveis para aluguel.
A partir de 1964, com o BNH (Banco Nacional de Habitação), é implementada a política de construção de grandes conjuntos.
Ao longo dos anos 80, essa forma de atuação é questionada. "O modelo se revelou problemático. Por exemplo, ao transferir as pessoas, as redes informais de apoio da vizinhança eram desfeitas", explica Eduardo Marques, 38, pesquisador do CEM (Centro de Estudos da Metrópole) do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). São valorizadas unidades habitacionais menores, não-serializadas, ações de urbanização de favelas, regularização de loteamentos e a recuperação de cortiços.
As favelas, que abrigavam 1,16 milhão de pessoas em 2000 segundo o CEM, são um problema relativamente recente. O registro mais antigo é de 1942, da favela da Várzea do Penteado, que se situava na av. do Estado (Bonduki).

Paradoxo e isolamento
Em 2000, a cidade tinha uma necessidade de moradias (380 mil) inferior ao número de imóveis vazios (420 mil). "Um total desencontro entre oferta e procura", diz o secretário municipal da Habitação, Paulo Teixeira, 42.
Na raiz do paradoxo está o fato de a população de baixa renda fugir do aluguel nas áreas consolidadas, que concentram imóveis vagos, para ir morar precariamente nas periferias distantes e em municípios vizinhos. As fronteiras metropolitanas se transformaram em depósito de problemas sociais e ambientais. Segundo o urbanista Kazuo Nakano, do Instituto Pólis, 3 milhões de pessoas ocupam áreas de proteção ambiental na Grande São Paulo.
Os moradores não encontram perto de suas casas oportunidades de trabalho e acesso aos serviços públicos. Em certa medida, até mesmo o isolamento do povoado do século 16 parece subsistir hoje nos confins suburbanos.
(EDNEY CIELICI DIAS)

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