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comida
Gosto local evoluiu do beiju com torresmo para a cozinha de padrão internacional
JOSIMAR MELO
COLUNISTA DA FOLHA
RICARDO MARANHÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Até a primeira metade do
século 19, a pobre vila de
São Paulo não tinha o que
oferecer para o forasteiro comer.
No século 16, era um lugar de escassez, embora as propriedades
rurais do seu entorno tivessem alguma auto-suficiência. Não havia
como dar de comer ao ousado
viajante que tivesse a coragem de
galgar as escarpas da serra pela difícil estrada indígena, "donde no
se pueden pasar ni cavalgaduras",
queixava-se dom Augusto Céspedes em 1628.
Por isso a antiga Câmara Municipal, em 1599, fez convite para
quem quisesse abrir casas de comestíveis. Um tal de Marco Lopez
apresentou-se e abriu uma "casa
de pasto" próxima à igreja do Colégio, onde os mascates que vinham vender tecidos e remédios,
ou os sitiantes dos arredores, podiam apear e comer torresmo,
beijus de tapioca, carne assada e
feijão mulatinho com farinha.
Não se encontraram registros
de estabelecimentos do gênero até
o século 19. Mas, provavelmente,
o que se comia nas casas que devem ter sucedido à de Lopez era
esse trivial simples mencionado
até mesmo depois de 1827, inauguração da Faculdade de Direito.
Os acadêmicos do largo São
Francisco se entediavam, até os
anos de 1860, com a falta do que
fazer. Tinha de se contentar com
uma ou duas tavernas de má catadura, ou com o Café da Maria
Punga, onde o café moído a pilão
acompanhava bolinhos de tapioca, broinhas de polvilho, bolos de
fubá e outras quitandas.
A partir de 1850, surgem os restaurantes: o Popular, na rua da
Imperatriz, o Balneário, na rua
Municipal, o de Bragança, na rua
da Quitanda, o de Gandolfo Nicola, na rua da Boa Vista, o Sereia
Paulista, na rua de São Bento. Entre eles, alguns que ficaram famosos: o Stadt Bern, dos alemães
Leuthold & Schaulz, que servia
chope (até 1870, só encontrado ali
e no Café Corde); e o restaurante
francês da Viúva Rogé, na rua do
Comércio, frequentado até pelo
poeta Castro Alves e sua amada, a
atriz Eugênia Câmara.
Na hora do lanche
Porém os mais famosos mesmo
nesse período foram os restaurantes de hotéis. Em 1857, abria-se o Hotel de France et Restaurant, na rua do Comércio. A culinária do Hotel da Europa foi cantada pelo visconde de Taunay. Os
fazendeiros gostavam muito do
Hotel de França.
Mas, pelo hábito do pequeno
lanche à tarde, no intervalo das
aulas vespertinas, os estudantes
corriam para doceiras como Nhá
Umbelina, defronte à Academia.
Nos últimos anos do século 19, a
capital paulista começa a mudar
rapidamente de fisionomia, com
um crescimento urbano induzido
pela dinâmica econômica da cafeicultura. Ao mesmo tempo, os
estudantes dos anos de 1860 e
1870 tornam-se a classe dirigente
do país: a República guindou ao
poder também os homens de negócios paulistas, junto com seus
parentes bacharéis em direito.
Agora ricos e poderosos, eles
exigiam mais qualidade dos seus
pontos gastronômicos. Tinham o
hábito de comer e beber em confeitarias como a Casa Fazoli, a do
alemão Adolfo Nagel e a Cordes.
Enquanto começa essa disseminação dos restaurantes, trazendo
aos paulistanos uma cozinha mais
sofisticada e cosmopolita, as mudanças são muito mais lentas no
âmbito familiar. Até o final do século 19, a comida trivial é ainda
calcada na cozinha original da
época dos bandeirantes: o arroz
com feijão, a farinha e a carne de
porco ou de boi e algum raro legume. As verduras continuavam escassas, o que só iria mudar com as
hortas japonesas de Itaquera e
Mogi das Cruzes, depois da Segunda Guerra (1939-1945).
As informações recolhidas dos
viajantes confirmam esse quadro.
Debret fala do hábito de comer
lombo de porco, embora as bistecas fossem mais apreciadas.
Agostini foge um pouco do tom
ao mencionar as refeições de lambari com chuchu e canjica. A proximidade da zona rural permitia
que, em domingos e dias de festa,
houvesse carnes de caça de aves,
como codornas e pombos.
Desde a Primeira Guerra (1914-1918), a indústria paulistana trouxe os progressos urbanos: bondes, iluminação pública, lojas e,
naturalmente, bares e restaurantes. Os industriais, comerciantes,
banqueiros e a classe média dos
serviços e profissões liberais agora representavam uma nova demanda de alimentos e bebidas.
Os primeiros a atendê-la foram
os italianos, que dominaram o
mercado de restaurantes nas décadas de 20 e 30. Desde as cantinas como a Capuano, da rua Conselheiro Carrão (de 1907), mais
antigo restaurante ainda em funcionamento na cidade, ou as do
Brás, como a Castelões (de 1924),
até hoje servindo suas massas generosas na rua Jairo Góis, passando pelos restaurantes em que o
povo do comércio do centro almoçava a partir dos anos 30, como o Spadoni, o Telêmaco, o Palhaço (conhecido por seus polpetones) e o Carlino; a Brasserie Ferrari (com seus galetos), o Gigetto
(desde 1938, hoje na Avanhandava); o Giani, com seu requintado
frango assado com jabuticaba; até
os mais sofisticados (a Brasserie
Paulista, da família Fasano), o
Franciscano, o Roperto (desde
1942, hoje na 13 de Maio).
Entretanto os franceses não ficaram para trás, como o Freddy,
mais antigo gaulês ainda em funcionamento; o La Popotte, na Vila
Normanda, hoje a galeria do Copan; o Le Logis, que começou em
Campo Limpo; o La Paillotte, de
1953, ainda hoje na avenida Nazaré; o La Casserole, de 1954, hoje no
Arouche; e o Marcel, do centro da
cidade, hoje em outros endereços.
As migrações ocorridas desde o
final do século 19 vão lentamente
introduzindo novos sabores também na cozinha do cotidiano. O
macarrão já aportara aqui desde
antes (provavelmente trazido pela
pequena migração italiana para o
Rio no começo do século 19), mas
ocupa espaço em São Paulo com
as ondas migratórias entre 1860 e
1920. Antes feito artesanalmente
em casa, sua popularização só foi
possível, porém, com a produção
industrial, inaugurada em 1896
quando o comendador Enrico
Secchi fundou o Premiato Pastificio Italiano, capaz de produzir
2.000 quilos de massa de 40 tipos
diferentes por dia.
Outros povos recém-chegados
também vão introduzir sua colher
na comida dos restaurantes e,
sempre mais lentamente, nos pratos caseiros dos paulistanos. Assim o bife e o arroz dos colonizadores portugueses ganharão a
companhia da esfiha libanesa, do
suflê francês, do salsichão alemão.
Mas nada com a intensidade da
influência italiana, que leva para
os lares o espaguete, a lasanha e o
bife à milanesa.
São Paulo se transformou na
"cidade que mais cresce no mundo" a partir do boom industrial da
Segunda Guerra. A urbanização
acelerada não parou mais de exigir restaurantes.
Os italianos continuaram a
marcar presença, com o Jardim
de Napoli (1949), o Cacciatore
(1952), a Venite (1956) ou a Cantina Speranza (1957). Para os mais
abastados, há desde 1953 as iguarias do Ca d'Oro. Os alemães se
estabeleceram em torno de sua
comunidade em Santo Amaro,
com o restaurante da Dona Ana, o
Rodolfo e, em 1948, o Windhuk.
Sabor cosmopolita
O caráter imigrantista e cosmopolita da cidade atraiu também
bons restaurantes árabes e armênios (Brasserie Victoria; Almanara, de 1950, e Casa Garabed, 1951);
espanhóis (La Coruña, de 1956,
Don Curro, 1958); suíços (Caverna Bugre, 1950); gregos (Acrópoles); chineses (Sino-Brasileiro); e
japoneses da Liberdade, que com
o Tanji e a Casa Hinodê, de 1966,
também conquistaram gente de
fora da comunidade.
A partir dos anos 70, com a chegada dos fast-foods, de um lado,
ou das sofisticações da nouvelle
cuisine francesa, de outro, e com a
multiplicação das churrascarias
de rodízio e dos bares de sushi,
São Paulo ganha ares de pólo gastronômico cosmopolita. E ao
hambúrguer americanizado responde com a comida por quilo,
fast-food mais adequado ao nosso
regime alimentar.
Só ficou faltando a afirmação de
uma base nacional, com bons restaurantes de cozinha regional
brasileira. Mas, nos anos 90, surge
uma nova geração de chefs de cozinha esclarecidos, oriundos da
classe média, que têm se interessado pelo resgate da cozinha brasileira, dando continuidade a um
movimento que curiosamente foi
deflagrado por estrangeiros (os
franceses Michel Thénard e Laurent Suaudeau e o belga Quentin
de Saint-Maur) que, a partir da
década de 80, fascinaram-se pelos
ingredientes locais.
Ricardo Maranhão é historiador da
gastronomia e professor na Universidade Anhembi Morumbi.
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