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São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 2003

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NINA HORTA

Cheiros e gostos de meio século


Os primeiros restaurantes de verdade surgiram em São Paulo apenas 350 anos após a fundação da cidade, que no princípio oferecia aos viajantes um trivial formado por torresmo, beijus de tapioca, carne assada e feijão mulatinho com farinha. Nas casas, podia-se comer lombo de porco ou lambari com chuchu


Há 450 anos...não sei. Mas, há 50 me lembro. O quarto centenário, estrelas de papel-alumínio caindo do céu, jogadas por aviadores voando baixinho.
Cheiros, muitos cheiros junto ao corpo, algodão Bangu pinicando bolinhas, bolero curto e permanente Toni entrando por todos os desvãos do mundo.
Éramos criaturas urbanas na rua Peixoto Gomide com Estados Unidos. A vizinha de nome Natália, a italianinha, recheava o pão com azeite de oliva e alho, Hermínia fritava alcachofras com farinha de rosca, Judite festejava com gefiltefish, Rutênio, o aviador, trazia as primeiras coca-colas com gosto de sabão Aristolino.
Dos sobrados, saíam cheiros de carne assada de panela, frango ensopado, arroz, feijão, pastel de queijo. Verdade verdadeira era que, mesmo sem internet e delivery, a comida vinha à porta. O homem do gelo com suas pedras, o padeiro com seu pão, o leite na garrafa e até cabras com sinos ao pescoço. Samburás com frangos.
De dois em dois quarteirões, a bênção de uma chácara, que podia ser uma horta ou pomar, sempre meio misteriosos. Portugueses com suas verduras, a Maria do Pé Sujo num mau humor de cão vendia caqui-chocolate. Morreram a Maria e os caquis escuros.
As moças bem-comportadas comiam cachorro-quente nas Lojas Americanas, coalhada com broa de fubá na Campo Belo e adoravam o chá do Mappin.
Em organza e tafetá, dançavam um para lá, dois para cá ao ritmo da orquestra Tabajara, bebendo guaraná quente.
O saxofone prometia amor e casamento com meninos espinhudos de mãos suadas em nada parecidos com Gregory Peck e o príncipe Philip.
Dona Serafita fazia balas de ovos, dona Alzira comia sanduíche de pão com chocolate e uvas. No Sacré-Coeur, éramos todas brasileirinhas, libanesas, italianas, nas casas de minarete da avenida Brasil, casas altas com porões mofados. As quatrocentonas (chamo carinhosamente de quatrocentonas aquelas que pensavam que só elas tinham avó) comiam simplesmente, e a comida era feita por empregadas numa rotina feliz de pescadas, bife picadinho de ponta de faca, frangos assados, empadinhas.
Adoravam rodelas de laranja com coco ralado por cima, olhos-de-sogra e passas recheadas com doce de coco.
Muita anágua com bordado inglês e, por baixo delas, Grace Metalious desvendava Peyton Place, o doutor Kinsey e Jack Kerouac já estavam "on the road".
Pasmem, já existia o Empório Santa Luzia, tal qual, bendito provedor de comidas de todos os feitios, ajudando a desmontar preconceitos alimentares. Descobrimos o chantilly batido na hora, a pedido de freguês, os arenques, o presunto cru.
Cheguei atrasada para as coisas de fazenda, São Paulo crescia e imitava-se bregamente a comida americana, reinavam a maionese e a gelatina colorida.
Não privei da paçoca de carne, receita ao lado, que hoje é o "ai-Jesus" dos paulistas saudosos, perdi o mangarito, o arroz de suã, o virado de farinha de milho e a bunda frita de içá. Mas já estava aqui a tempo do Mateus Rosé e do Grandjó. Tim, tim.

Nina Horta é colunista da Folha.


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