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São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 2003

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moda

Look paulistano começa com índios e bandeirantes e chega ao luxo parcelado em 5 vezes


A partir do século 19, o mecanismo número um da moda (o da diferenciação) se faz observar: ser diferente dos negros e dos índios passa a ser preocupação. É o início de um complexo de inferioridade que permanece até os dias hoje, sobretudo nas elites. O ano de 1872, o da chegada da iluminação pública a gás, serve como marco zero da (depois famosa) noite paulistana


ERIKA PALOMINO
COLUNISTA DA FOLHA

Analisar os 450 anos de São Paulo pelo que se vestiu de 1554 até hoje é verdadeiro -e saboroso- exercício de memória, com doces lembranças ao longo do caminho.
Da fundação até a Proclamação da República (1889), o ritmo foi mais lento -inexistia o próprio conceito de moda como sistema de mudanças movido pela comparação e pela vocação burguesas.
Até pouco tempo atrás (ou até hoje?), a essência era mesmo a da cópia do que se via "lá fora". Por exemplo, o primeiro look paulistano por excelência, o do bandeirante, é basicamente um reflexo das roupas usadas na Europa nos séculos 16 e 17.
Até meados do século 18, as roupas usadas pelos paulistanos servem para cobrir, aquecer, proteger e esconder o corpo. Aos poucos, vão adquirindo status de diferenciação social. As regras "pragmáticas" dos tempos coloniais, por exemplo, visam a distinção entre os grupos e são claras: aos negros e mulatos, nascidos livres, é proibido o uso de tecidos finos.
Quando a família real portuguesa chegou ao país, em 1808, tudo era rudimentar, feito com algodão barato. A partir do século 19, o mecanismo número um da moda (o da diferenciação) se faz observar: diferir de negros e índios passa a ser preocupação, revelando ao mesmo tempo o gosto pelas roupas européias e o início de um complexo de inferioridade que permanece até nos dias hoje, sobretudo nas elites.
É francesa a influência para o vestuário feminino. A paulistana verdadeiramente elegante deveria ter tudo vindo diretamente de Paris. A influência é inglesa para os homens, que adotam o estilo sóbrio, de tons escuros e contidos.
Em 1827, com a Faculdade de Direito, instalada no largo de São Francisco, estudantes de diferentes lugares do país trazem vida a uma São Paulo provinciana e pacata. Nessa época, o look cavanhaque é um must.
Na década de 1870, com o desenvolvimento econômico provocado pelo café, tem início um comércio mais sofisticado. São Paulo absorve os primeiros sopros de cosmopolitismo europeu.

Noite iluminada
Em 1872, a chegada da iluminação pública a gás serve de marco zero da (depois famosa) noite paulistana. Até então, praticamente não se saía sem sol -a não ser em casos de lua cheia.
Sem muitos lugares para ir, as bem-nascidas, que acompanhavam os modismos pelas revistas, usam saias-balão e anquinhas. O cabelo é crespo, feito com papelotes. O espartilho passa a ser peça-chave da elegância feminina. Também em 1880 começa a imigração européia em massa.
Alfaiates, costureiras e sapateiros passam a ser determinantes da geografia social dos bairros paulistanos. A importação de tecidos fica nas mãos dos alemães, franceses e italianos, que cuidavam também de calçados.
Os judeus se dedicam ao comércio de tecidos, confecções e armarinhos. Os sírios e os libaneses -os mascates- fazem da rua 25 de Março o seu reduto.
Em 1900, a Inglaterra vivia o período eduardiano (1900-1939). Os paulistanos também, já que os homens vestiam-se de forma igual sob calor brasileiro. As mulheres viviam a belle époque (1890-1939), aqui em versão tropical.
Com a virada da década, a silhueta começa a mudar. As paulistanas, aos poucos, livram-se das crinolinas e das barbatanas. As saias são então afuniladas no pé, as chamadas "entravées", impedindo um passo de mais de dez centímetros (as paulistanas que as usam são as "travadinhas").
Com o processo de urbanização e industrialização, a vida social fica mais agitada, e para atender às demandas da aristocracia cafeeira abre em novembro daquele ano o Mappin Stores, na rua 15 de Novembro, seguido do Mundo Elegante e da Casa Alemã. Instala-se um hábito fundamental na cultura paulistana: o footing.

Tornozelos à mostra
Anos 20: entra em cena a Paulicéia Desvairada. Em 1922, os modernistas tomam conta do "Theatro Mvnicipal", com ícones femininos como Tarsila do Amaral (que choca a sociedade com seus modelões vanguardistas) e a belíssima Pagu.
As melindrosas paulistanas, ou pimpinelas, têm os cabelos curtos, à la garçonne, e dançam charleston com suas piteiras, em vestidos de cintura solta e baixa, comprimento logo abaixo do joelho.
Nessa década, pela primeira vez, são vistos os tornozelos das paulistanas, que também passam a ir à praia e a praticar esportes.
O modernismo vai respingar no dia-a-dia dos paulistanos na década de 1930, quando há uma valorização de elementos nacionais. Especificamente na moda, isso se dá a partir do clima. O paletó e o chapéu deixam de ser imperativos -ao menos para o lazer.
Nos anos 40, entretanto, os grã-finos ainda se vestem nos moldes de Paris, com muitas jóias e peles, símbolo total de status. É a vez de maisons chiques como as de Rosita (Rosa de Libman). O new look lançado por Dior em 1947 também tinha de ser reproduzido aqui, mas faltava sua principal matéria-prima: o tafetá, que aparece pelas mãos de Gabriela Pascolato e sua Santaconstancia. As primeiras indústrias têxteis se instalam no Bom Retiro. A cultura de moda floresce: em 1957, São Paulo assiste a seu primeiro desfile internacional, o de Pierre Balmain.
No ano seguinte, um fenômeno que se tornaria a cara da cidade: Caio de Alcantara Machado realiza a Fenit, com materiais e maquinários. Enquanto isso, na região da praça da República, um jovem vindo do Rio abria seu ateliê. Seu nome é Dener Pamplona de Abreu. Ele dá início à primeira geração de costureiros made in São Paulo, em que se incluem Clodovil, Ronaldo Esper e Amalfi.
Até os anos 50, a área hype é a rua Barão de Itapetininga (com o ateliê de Dener) e a praça Ramos de Azevedo (ir ao salão de chá do Mappin era tudo).
Nos anos 60, começa a crescer a população da avenida Paulista. Valorizada pelo fato de ser a rua do transporte público, a Augusta torna-se o must, povoada por brotos e playboys. Nas ruas, os adeptos da Jovem Guarda difundem a moda de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia.
O estilo tropical é considerado chique, graças a iniciativas como a linha de tecidos com estampas coloridas de ilustradores brasileiros (a Diretório Tropical), lançada pela tecelagem Matarazzo-Boussac. Também a Rhodia lança coleções brasileiras para exportação. Paulistanos e paulistanas absorvem o flower power. A cultura jovem explode.

Vocação underground
Nos anos 80, com o crescimento da malha na moda, São Paulo surge à frente da produção nacional. A Cooperativa de Moda revela Jum Nakao, Walter Rodrigues e Conrado Segreto.
A cidade toma para si o posto de lançadora de moda e, como epicentro econômico, passa à frente do Rio de Janeiro. Decola a cultura dos shopping centers. Todo mundo quer Soft Machine, Zoomp, Forum. A Oscar Freire vira referência do estilo SP.
Nas periferias da cidade, os punks escrevem sua história, determinando outra clara vocação de São Paulo: o underground. A cultura do gosto musical passa a dividir a metrópole em tribos, como os góticos e os clubbers.
Dessa cena, vem também a fagulha que incentivaria a moda brasileira, com desfiles de jovens criadores ansiosos por se expressar, como Alexandre Herchcovitch. Também no início da década, o governo Collor libera as importações. A empresária Eliana Tranchesi traz nomes até então inimagináveis para o varejo brasileiro: Chanel, Gucci, Dolce & Gabbana chegam à Daslu, um negócio de amigas que se transformaria num fenômeno de visibilidade internacional.
Com o reerguimento da economia, começa a funcionar a engrenagem da moda. São Paulo entra no mapa com o primeiro calendário de desfiles, que se tornam eventos de cunho social e cultural.
Na virada dos anos 2000, pela primeira vez jornalistas estrangeiros vêm assistir o que se faz por aqui, enquanto estilistas de São Paulo desfilam fora. O interesse do mundo se reflete na abertura de grifes de luxo na região dos Jardins, com Louis Vuitton, Dior, Cartier, Tiffany, Armani. São Paulo se torna, então, o único lugar do planeta em que o luxo é parcelado em cinco vezes. Sem juros.

Colaborou JOÃO BRAGA, especial para a Folha


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