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Biotecnologias podem disseminar teste em massa de DNA e aborto seletivo

Privacidade, eugenia e preconceito alimentam desconfiança genética

DA REPORTAGEM LOCAL

O ano é 2020.
Entre os benefícios do Projeto Genoma Humano, concluído há duas décadas, a ciência ganhou a capacidade de prever com 80% de certeza que seu filho nascerá com uma predisposição para a esquizofrenia. Existem anticorpos sintéticos específicos para impedir que a doença se desenvolva, mas com sérios efeitos colaterais. O que você faz, dá a medicação para uma criança sadia?
O dilema foi apresentado por Phillip Reilly no dia 11 de maio a uma platéia de 800 pessoas no MIT (Massachusetts Institute of Technology). O médico e advogado especializado em temas de bioética não deu uma resposta direta para a questão, mas fez uma previsão de certo modo sombria:
“No futuro as pessoas vão tomar remédios não quando estiverem doentes, mas sadias, para impedir que fiquem doentes. Os remédios serão dados às crianças, não aos adultos.”
Pode não ser uma forma simpática de apresentar as maravilhas da genética, mas centenas de advogados, juízes, médicos e religiosos julgaram-na pertinente o bastante para abalar-se até Cambridge, Massachusetts. Debateram durante dois dias essas questões espinhosas, que a avalanche genômica suscita às dúzias.
O nome do simpósio era “Genes e Sociedade: Impacto das Novas Tecnologias na Lei, na Medicina e nas Políticas”. Reilly foi seu principal organizador e deu o tom do encontro: “Temos muito com que nos preocupar sobre como lidar com a informação genética”.
Do controle de informações individuais à questão da privacidade perante bancos de dados genéticos, da pesquisa com células de embriões aos transgênicos, não faltaram temas polêmicos.
Informação genética é a quintessência da informação sobre a diferença, que tanto infortúnio causou no passado. Basta lembrar a eugenia (melhoramento da espécie), normal nos meios “científicos” da primeira metade do século 20 _não só na Alemanha.

Esterilização e aborto
Em lugar de câmaras de gás, países como os EUA recorriam a programas de esterilização forçada. O objetivo era o mesmo: uniformizar a “boa” carga hereditária de homem para homem, eliminando a diferença que hoje se sabe ínfima (0,1%, ou uma letra a cada mil do código genético).
Phillip Reilly não tem dúvida de que a eugenia virá, ou melhor, já está vindo. “A nova eugenia será movida pelos consumidores”, disse em entrevista à Folha, num frenético intervalo para almoço. “Nossos filhos, ou talvez nossos netos, vão crescer num mundo em que testes genéticos serão tão normais quanto vacinação.”
As pessoas vão querer, e vão usar, a informação genética. Como ainda não há meios de “consertar” a maioria dos genes em que a ciência é capaz de apontar defeitos, a forma mais direta de eliminá-los ainda é o aborto.
“Quanto mais poder de diagnóstico nós tivermos, e quanto maior for a distância entre diagnóstico e terapia, o aborto seletivo permanecerá como uma opção por um tempo muito longo.”
Com a multiplicação vertiginosa do conhecimento sobre genes defeituosos, pode-se facilmente imaginar um mundo em que não haveria lugar para pessoas como Abraham Lincoln (veja quadro à esquerda). Especula-se que ele tinha a síndrome de Marfan.
O médico, advogado e ensaísta, mesmo sendo um dos mais ativos arautos dos dilemas éticos criados pela genética e pela biotecnologia, não se considera um pessimista. “A questão mais importante é proteger a autonomia do indivíduo, de modo que ele ou ela possam decidir se querem ou não a informação, o que querem fazer com ela, e não ter um terceiro _seja o Estado, o sistema educacional ou seu empregador_ dizendo o que devem fazer.”
Para Reilly, as instituições democráticas serão capazes de dar conta do recado. “Não vejo um cenário sombrio no futuro, indústrias maldosas conspirando para usurpar os direitos das pessoas.”

Bancos de dados genéticos
Tranquilizador, também, foi o islandês Kari Stefansson, um dos pais do banco de dados médicos que reúne virtualmente toda a população de seu país. Houve um debate sobre a possibilidade de a iniciativa ameaçar a privacidade dos cidadãos, mas, 700 artigos de jornal depois, 90% se disseram favoráveis ao projeto. Apenas 2,2% pediram que seus prontuários não fossem incluídos.
Apesar disso, houve quem receitasse cautela, como o professor de direito da Universidade de Stanford Henry Greely. Em particular no que se refere à coleta de informações genéticas sobre grupos étnicos, recomenda especial atenção para cinco Cs: consentimento, confidencialidade, comunicação, controle e comércio.
A genética “vai tocar cada aspecto da sociedade humana”, disse no encontro Eric Lander, do centro de sequenciamento do MIT, o mais produtivo dos EUA.
O alarmismo, por outro lado, talvez não se justifique. Sua fonte, acredita Reilly, estaria em certa incompreensão sobre o que é diferença genética: “Não acredito que ser identificado como portador de um gene para a asma será como ter um rótulo. Mesmo que isso aconteça, cada um de nós será rotulado de cinco maneiras diferentes. Não serve para discriminar pessoas.” (MARCELO LEITE)

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