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Natureza e meio social atuam na formação do homem, mas genoma não diz como

Biólogos ainda debatem quais são as relações entre genes e ambiente


Marcelo Leite
EDITOR DE CIÊNCIA

Ler e transcrever quase 100% do DNA característico da espécie humana é um feito científico tão dramático que corre o risco de ofuscar. A ilusão consagrada pela grandiosidade do Projeto Genoma Humano (PGH) é de que os genes, afinal, venceram a guerra filosófica contra o ambiente, de que a natureza (“nature”) prevalece sobre o meio social (“nurture”) e de que de agora em diante a biologia tem os meios para interferir em tudo o que é humano, da doença ao comportamento.
Código dos códigos, livro da vida, Santo Graal da biologia, software, planta ou receita da espécie _as imagens associadas com a decifração do genoma raramente escapam do exagero. Muitos superlativos são necessários para justificar um projeto que custou bilhões de dólares, mas não resultará em nada como um pouso na Lua. Tudo o que o público poderá ver do genoma é uma série infindável de letras A, T, C e G _além de patentes sobre genes humanos.
Bastam um curso rápido de genética ou poucas horas com um geneticista para perceber que o genoma é muito mais complicado _e as promessas, simplistas_do que todos se acostumaram a acreditar.
Da complicação não escapa nem mesmo o criador de uma frase lapidar sobre o PGH: que seu término equivaleria a “conhecer o que é ser humano”. O Nobel de Química (1980) Walter Gilbert, professor da Universidade Harvard, foi também descobridor de métodos fundamentais para o sequenciamento e dedicado incentivador do PGH. Ele pede calma:
“No momento em que tivermos a sequência, teremos algo próximo de uma lista dos genes, mas não vamos entendê-los, saber o que cada um faz, por que está ali _isso vai demorar”, disse Gilbert à Folha, na sua sala em Cambridge (nordeste dos Estados Unidos).
“Ainda não está nada claro qual será o resultado desse conhecimento, e também quais serão os melhores meios de obter conhecimento real sobre o que diferencia tecidos individuais, o que faz uma parte do cérebro diferente de outra, qual é a natureza do processo que determina suas conexões.”
A poucos metros do escritório de Gilbert, pesquisa e leciona Richard “Dick” Lewontin, geneticista de populações que se especializou em criticar o determinismo genético (ou seja, a idéia de que tudo é determinado pelos genes). Com outro harvardiano, o paleontólogo Stephen Jay Gould, Lewontin combate há 25 anos as idéias reducionistas em biologia.

Ambiente
Nos anos 70, auge de um determinismo de sinal trocado, para o qual tudo no homem é moldado ou moldável pelo meio, Lewontin foi muito popular. Hoje é um intelectual retraído, que raramente responde a um pedido de entrevista. Fala por suas obras, como no volume “A Tripla Hélice” (The Triple Helix, Harvard University Press, 136 págs., US$ 22,95).
O DNA tem duas hélices entrelaçadas. A terceira, na imagem de Lewontin, é o ambiente. Para ele, organismos e espécies resultam de interações dinâmicas e complexas entre os genes e o meio, carregadas de indeterminação e acaso. “Processos orgânicos têm uma contingência histórica que impede explicações universais”, escreve. “O problema para a biologia é que o modelo da física, alçado a paradigma da ciência, não lhe é aplicável, porque não existem para organismos os análogos de massa, velocidade e distância.”
O DNA, na visão de Lewontin, não “faz” nada, é um produto da evolução biológica e depende das proteínas que supostamente controla para ser lido e ativado. “Se tivermos a sequência completa de DNA de um organismo e poder de computação ilimitado, não poderemos computar o organismo, porque ele não se computa a si mesmo a partir de seus genes”, afirma Lewontin (ou seja, os genes não têm a capacidade de, sozinhos, produzir um indivíduo).
Gilbert dá a entender que concorda com o antideterminismo do colega docente. “O prédio, para funcionar, depende não só do projeto, mas de tudo que se utiliza para lhe dar substância.” O Nobel chegou a dizer que considera “muito útil” o alerta de Lewontin: “De fato, o público tende a tornar-se muito determinista”.

Museu
A aparente concordância logo desmorona. Gilbert conta entre risos que o colega já comparou os genes com exploradores e proteínas com explorados. “Dick tem muito receio desse tipo de visão, mas acho que ele vai muito longe. Há um exagero para o outro lado, e ele parece encarcerado nisso.”
Para Gilbert, futuro e passado pertencem aos genes: “Os museus, que antes eram coleções de animais, agora se tornarão coleções de moléculas de DNA. Se você quiser examinar as relações do organismo com o mundo, o melhor meio de fazer isso é olhar para as moléculas de DNA”. Para quem crê que tudo está previsto no roteiro nos genes, nada melhor que um genoma acabado.


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