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TURISTA OCIDENTAL
Na Coréia, desejo de filhos homens e aborto seletivo ditam sequência da família
Macholândia
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A SEUL
Vai ter muito marmanjo saindo
no tapa para não sobrar: daqui a
oito anos, uma festa na Coréia do
Sul com homens e mulheres nas
idades em que mais costumam se
casar deve juntar cem casais e deixar chupando dedo 29 espécimes
do sexo masculino.
A projeção é do Escritório Nacional de Estatística, um órgão
oficial. Quantifica um drama subterrâneo cada vez mais exposto: a
expansão do aborto seletivo, em
que a gestação só é interrompida
quando o feto é feminino.
Em museus, templos e palácios,
basta reparar nas visitas escolares.
Quase sempre há mais meninos
do que meninas. ""É porque as famílias preferem filhos homens",
diz Ha Tae-chul, funcionário do
Memorial da Guerra, que recebe
mais de mil jovens por dia.
Em 1985, a taxa de homens na
faixa etária-pico de casamento
(25-29 anos) para o seu equivalente de mulheres (20-24 anos)
era de 100,2 para 100. Em 1990,
pulou para 104,7. Em 2000, conforme projeção, para 110,2. Em
2010, deve ser 128,6.
A razão para a desproporcionalidade são os fundamentos confucionistas da sociedade coreana. A
doutrina ética do filósofo chinês
Confúcio (551-479 a.C.) estabelece o protagonismo do homem.
A linhagem das famílias é masculina. Quando se casa, a mulher
passa a pertencer à família do marido, não mais à sua, embora
mantenha o sobrenome. Os filhos
só têm um sobrenome, o do pai.
Sem um homem, a família acaba.
Enquanto cada mulher tinha
em média 4,3 filhos, como em
1970, as crianças iam nascendo e,
cedo ou tarde, vinha um homem.
Em 2000, só havia 1,7 filho por
mulher. Se o primeiro bebê fosse
menina, o segundo haveria de não
ser. Caso contrário, para a família
não acabar, só com uma terceira
gravidez, ""bem-sucedida".
Um estudo da universidade coreana Hallym mostrou que, de
1980 para 1994, o índice de natalidade de meninos por 100 meninas
pulou de 105 (dentro dos padrões
biológicos) para 109. Já em 1990, a
partir do terceiro filho, nasceram
pelo menos dois por um, distorção produzida pelos abortos seletivos. Hoje, nascem 116 bebês homens por centena de mulheres.
Com essa cultura entranhada,
no hospital ninguém entendeu
nada quando Park Won-Bock, 41,
vibrou, há 11 anos, com o nascimento de sua primogênita, Park
Soo-hyeon. ""Não compreendiam
a alegria dele, afinal era uma menina", diz a mulher de Park e mãe
de Soo-hyeon, Lim Eun-suk, 38.
O registro de nascimento de
Park mostra que ele pertence à 36ª
geração familiar. Se depois ele não
tivesse tido um filho, Park Min-cheol, a família terminaria.
Lim e Park são mestres em literatura portuguesa, títulos obtidos
no Brasil. Ela, na Unicamp. Ele, na
PUC-SP. Hoje Lim ensina português na Universidade Hankuk,
em Seul. Park dirige o Brazil Center, empresa que mantém na internet uma página de notícias sobre o país onde estudou.
Nem todo casal é como eles, recebendo com felicidade qualquer
filho. Lim conhece quem tenha
abortado por esperar menina,
tentando nova gravidez para
apostar num garoto.
A brasileira Andrea Souza, 27,
também. Ela se mudou para Seul
há quatro anos, depois de se casar
com um coreano. Andrea, ainda
sem filhos, tem uma colega na fábrica de eletrônicos na qual trabalha na Coréia que abortou porque
seria mãe de mulher. ""A sogra
pressionou demais. Disse que tinha de tirar para tentar um homem. Falou que, se não é filho homem, não é reconhecido."
Outra colega já tinha uma filha e
engravidou. Vivia a chorar, com
medo de que fosse um embrião
feminino. Nesse caso, iria abortar.
Um dia apareceu eufórica: descobriu que era masculino.
Por ano, deixam de nascer na
Coréia 30 mil mulheres devido ao
aborto seletivo. Não entram no
cálculo as interrupções das gestações em que o motivo independe
do gênero. De cada 11 ou 12 bebês
do sexo feminino, um deixa de
nascer porque seria menina. Na
China há problema semelhante.
Embora ilegais desde 1953 e
possíveis só em situações excepcionais a partir de 1973, os abortos
induzidos foram decisivos para a
taxa de natalidade despencar na
Coréia. Hoje eles diminuíram,
mas, como nascem menos crianças, em algumas regiões aumentaram relativamente.
Desde o início dos anos 90, os
médicos são proibidos de revelar
aos pais o sexo do bebê, seja por
meio de ultra-sonografias, seja
por análises genéticas do feto. A
pena chega à prisão. Praticamente
não há punições. Conta-se que até
médicas revelam o segredo. Com
menos opções, cada vez mais coreanos se casam com estrangeiras, especialmente asiáticas.
Em muitos aspectos comportamentais a Coréia se move com
lentidão. Segue em vigor a lei que
determina que, na morte do pai, o
novo chefe do lar não é a mãe,
mas o primeiro filho homem.
Mulheres comem testículos de
animais por confiar que serão recompensadas com um menino.
Nos casamentos, um dos motivos
do olhar triste da noiva é a crença
de que, se ela sorrir, o primeiro
descendente será uma mulher.
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