São Paulo, terça-feira, 04 de junho de 2002

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TURISTA OCIDENTAL

Na Coréia, desejo de filhos homens e aborto seletivo ditam sequência da família

Macholândia

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A SEUL

Vai ter muito marmanjo saindo no tapa para não sobrar: daqui a oito anos, uma festa na Coréia do Sul com homens e mulheres nas idades em que mais costumam se casar deve juntar cem casais e deixar chupando dedo 29 espécimes do sexo masculino.
A projeção é do Escritório Nacional de Estatística, um órgão oficial. Quantifica um drama subterrâneo cada vez mais exposto: a expansão do aborto seletivo, em que a gestação só é interrompida quando o feto é feminino.
Em museus, templos e palácios, basta reparar nas visitas escolares. Quase sempre há mais meninos do que meninas. ""É porque as famílias preferem filhos homens", diz Ha Tae-chul, funcionário do Memorial da Guerra, que recebe mais de mil jovens por dia.
Em 1985, a taxa de homens na faixa etária-pico de casamento (25-29 anos) para o seu equivalente de mulheres (20-24 anos) era de 100,2 para 100. Em 1990, pulou para 104,7. Em 2000, conforme projeção, para 110,2. Em 2010, deve ser 128,6.
A razão para a desproporcionalidade são os fundamentos confucionistas da sociedade coreana. A doutrina ética do filósofo chinês Confúcio (551-479 a.C.) estabelece o protagonismo do homem.
A linhagem das famílias é masculina. Quando se casa, a mulher passa a pertencer à família do marido, não mais à sua, embora mantenha o sobrenome. Os filhos só têm um sobrenome, o do pai. Sem um homem, a família acaba.
Enquanto cada mulher tinha em média 4,3 filhos, como em 1970, as crianças iam nascendo e, cedo ou tarde, vinha um homem. Em 2000, só havia 1,7 filho por mulher. Se o primeiro bebê fosse menina, o segundo haveria de não ser. Caso contrário, para a família não acabar, só com uma terceira gravidez, ""bem-sucedida".
Um estudo da universidade coreana Hallym mostrou que, de 1980 para 1994, o índice de natalidade de meninos por 100 meninas pulou de 105 (dentro dos padrões biológicos) para 109. Já em 1990, a partir do terceiro filho, nasceram pelo menos dois por um, distorção produzida pelos abortos seletivos. Hoje, nascem 116 bebês homens por centena de mulheres.
Com essa cultura entranhada, no hospital ninguém entendeu nada quando Park Won-Bock, 41, vibrou, há 11 anos, com o nascimento de sua primogênita, Park Soo-hyeon. ""Não compreendiam a alegria dele, afinal era uma menina", diz a mulher de Park e mãe de Soo-hyeon, Lim Eun-suk, 38.
O registro de nascimento de Park mostra que ele pertence à 36ª geração familiar. Se depois ele não tivesse tido um filho, Park Min-cheol, a família terminaria.
Lim e Park são mestres em literatura portuguesa, títulos obtidos no Brasil. Ela, na Unicamp. Ele, na PUC-SP. Hoje Lim ensina português na Universidade Hankuk, em Seul. Park dirige o Brazil Center, empresa que mantém na internet uma página de notícias sobre o país onde estudou.
Nem todo casal é como eles, recebendo com felicidade qualquer filho. Lim conhece quem tenha abortado por esperar menina, tentando nova gravidez para apostar num garoto.
A brasileira Andrea Souza, 27, também. Ela se mudou para Seul há quatro anos, depois de se casar com um coreano. Andrea, ainda sem filhos, tem uma colega na fábrica de eletrônicos na qual trabalha na Coréia que abortou porque seria mãe de mulher. ""A sogra pressionou demais. Disse que tinha de tirar para tentar um homem. Falou que, se não é filho homem, não é reconhecido."
Outra colega já tinha uma filha e engravidou. Vivia a chorar, com medo de que fosse um embrião feminino. Nesse caso, iria abortar. Um dia apareceu eufórica: descobriu que era masculino.
Por ano, deixam de nascer na Coréia 30 mil mulheres devido ao aborto seletivo. Não entram no cálculo as interrupções das gestações em que o motivo independe do gênero. De cada 11 ou 12 bebês do sexo feminino, um deixa de nascer porque seria menina. Na China há problema semelhante.
Embora ilegais desde 1953 e possíveis só em situações excepcionais a partir de 1973, os abortos induzidos foram decisivos para a taxa de natalidade despencar na Coréia. Hoje eles diminuíram, mas, como nascem menos crianças, em algumas regiões aumentaram relativamente.
Desde o início dos anos 90, os médicos são proibidos de revelar aos pais o sexo do bebê, seja por meio de ultra-sonografias, seja por análises genéticas do feto. A pena chega à prisão. Praticamente não há punições. Conta-se que até médicas revelam o segredo. Com menos opções, cada vez mais coreanos se casam com estrangeiras, especialmente asiáticas.
Em muitos aspectos comportamentais a Coréia se move com lentidão. Segue em vigor a lei que determina que, na morte do pai, o novo chefe do lar não é a mãe, mas o primeiro filho homem.
Mulheres comem testículos de animais por confiar que serão recompensadas com um menino. Nos casamentos, um dos motivos do olhar triste da noiva é a crença de que, se ela sorrir, o primeiro descendente será uma mulher.



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