São Paulo, sábado, 08 de junho de 2002

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TURISTA OCIDENTAL

REVOLUÇÃO


Na Coréia, jogos atraem torcedores chineses de todos os cantos do planeta

Em Seogwipo, turistas e rebatizados ensinam sobre a reviravolta do país vizinho



MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A SEOGWIPO

Às 7h do dia 1º de junho de 1989, o primeiranista da faculdade de gerência de materiais Li An, então com 19 anos, juntou-se aos estudantes que protestavam contra o governo da China na praça da Paz Celestial, em Pequim. Estava lá três dias depois, quando uma operação policial-militar deu cabo da rebelião.
Na virada de 12 para 13 de julho de 1998, pelo horário chinês, o estudante Mirguo Wang, à época 21 anos, assistiu à decisão da Copa entre França e Brasil. Viu pela TV, de sua casa na pequena cidade de Yingkou, 40 mil habitantes. Apaixonado pelo futebol brasileiro, chorou do primeiro dos três gols franceses ao apito final.
Desde a quinta-feira passada, Li An, 32, e Mirguo Wang, 25, passam alguns dias na mesma cidade: Seogwipo, na ilha de Jeju, na Coréia do Sul, 130 km ao sul da península. Eles nunca se viram.
Formam no pelotão de 20 mil chineses, na projeção mais conservadora dos organizadores sul-coreanos do Mundial, que veriam a partida da manhã de hoje entre a sua seleção e a do Brasil.
As ruas da ilha foram tomadas por turistas do país que disputa a sua primeira Copa e estreou com derrota. Eles chegariam ainda em maior número poucas horas antes do jogo, nos pacotes de viagem de ida e volta no mesmo dia.
É o maior grupo que já saiu da China para assistir a uma competição esportiva, segundo a agência de notícias France Presse.
O perfil dos que estão na Coréia do Sul ensina mais sobre a reviravolta chinesa nas últimas duas décadas do que a leitura de alguns compêndios. Os viajantes são beneficiários diretos ou indiretos da reintrodução no capitalismo sob a extravagante batuta de um partido único comunista, no poder desde 1949.
Chama a atenção a quantidade dos que estão na faixa dos 30 anos. Trabalham em comércio exterior, finanças, internet, informática. Alguns vivem no estrangeiro. Tiveram de R$ 5.000 a R$ 7.000 para gastar no tour pelos três jogos da primeira fase vindos de um país em que uma família média, mesmo urbana, não recebe tal quantia em um ano.
Quem já embarcou com ingressos não teve de apresentar garantias bancárias nem à China nem à Coréia assegurando o retorno. Os outros comprovaram acumular R$ 6.000 em depósitos.
Os torcedores louvam o fim da economia fechada à iniciativa privada e apostam que uma nova revolução está só começando.
Afirmam representar uma ascendente classe média. Lembram, em vários aspectos, yuppies ocidentais. Em todos os grupos contatados no mínimo uma pessoa falava inglês. ""Está cada vez melhor", exalta o consultor de finanças Dan Haijian Zhao, 36, vestindo uma camisa da seleção.
""Sem essas mudanças, nós não poderíamos estar aqui", afirma Li An, hoje dedicado a negócios de importação e exportação e que em 1989 estava na praça da Paz Celestial. Ele viajou com cinco amigos, dos quais só uma mulher, que acompanha o marido. Brancos como uma lua cheia, divertem-se rolando na areia da praia de Jungmun.
""Dez anos atrás quase não haveria torcida nossa", acrescenta Li Zhang, 32, engenheiro que trabalha com informática no Canadá e vai pelo menos quatro vezes por ano à China. Ele apontou o que pensa ser o melhor do seu país atualmente: ""É possível ficar riquíssimo em pouco tempo".
Os amigos estão pagando R$ 130 cada um de diária de hotel em Seogwipo. É bem mais do que Liangang Liu, 27, e Mirguo Wang, o que chorou pelo Brasil em 1998, puderam desembolsar. Eles estão num motel.
Ambos estudam informática nos EUA, com bolsas norte-americanas e autorização do governo chinês. Passam as férias na China. ""Hoje somos encorajados a viajar", conta Liu. Para Wang, ""com as mudanças, tudo é melhor que pouco tempo atrás".
Com camisa estampada, o funcionário de uma empresa de internet em Pequim Richard Yu não teve problemas para destinar R$ 5.200 à viagem. Yu estima que haja 50 milhões de usuários da rede na China, onde o acesso é livre.
Traço da ampliação de costumes do Ocidente no país e da internacionalização da sua economia, Yu se rebatizou como Richard.
A jornalista Jerry Guo, 32, editora no canal de televisão CCTV, também usa outro nome, Jerry. Recusa-se a revelar o original. Diz que a principal mudança na vida das mulheres chinesas é a ""independência crescente". Ela mora com o namorado em Pequim. Em Seogwipo, cobre a Copa.
A bancária Lipin Yang, 31, diz que as suas compatriotas estão mais agressivas e modernas. Indagada sobre o maior defeito dos homens chineses, calou. O marido estava ao seu lado.
Além de comemorar o novo rumo da China que lhes permitiu acompanhar o Mundial, os torcedores são unânimes numa assertiva: o futebol já é o esporte mais popular do país mais populoso do mundo (1,3 bilhão de habitantes). Superou, dizem, o tênis de mesa.
A pirataria de produtos futebolísticos é disseminada. A violência vem se alastrando, formando hooligans chineses. Máfias de suborno de árbitros são reveladas. Fora do campo, o ""primeiro mundo" do futebol chegou. Dentro, é outro jogo.



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