|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Longe do gol
Portão de ferro separa barracos de tábua da favela Belém-Belém do Engenhão, o mais vistoso estádio construído para o Pan-Americano, em bairro antigo e decadente do Rio
ELVIRA LOBATO
DA SUCURSAL DO RIO
A obra mais vistosa do Pan
tornou quase invisível a sua vizinhança mais miserável.
Um portão de ferro esconde a
favela Belém-Belém dos olhares dos torcedores e turistas
que chegam ao estádio João
Havelange, mas não abafa os
protestos de seus moradores,
que contavam com a remoção
para casas de alvenaria em outras áreas do Engenho de Dentro, antigo e decadente bairro
da zona norte do Rio, subitamente transformado em cartão
postal da cidade.
O Engenhão é a obra de
maior impacto visual do Pan. A
remoção havia sido prometida
pela prefeitura, aos moradores,
no início das obras, mas não
saiu do campo das promessas.
De qualquer ponto da favela,
o estádio domina a paisagem
com sua estrutura colossal. O
portão de acesso à favela fica
em frente a uma bilheteria.
São 120 barracos de tábua
construídos sobre os antigos
trilhos da Rede Ferroviária Federal que davam nas oficinas de
reparo de locomotivas, em cujo
terreno foi construído o estádio. A ocupação começou em
1998. As famílias moram entre
ratos, lacraias e lixo.
A principal queixa dos moradores é que a construção do Engenhão não os beneficiou em
nada e que ninguém conseguiu
emprego como peão na obra.
Ao lado da Belém-Belém há
uma outra favela de alvenaria,
chamada Trajano de Medeiros,
com 40 anos de existência e nenhuma urbanização. As duas
somam cerca de mil moradores. O Engenhão comporta um
público de 45 mil pessoas.
O governo gastou R$ 380 milhões na construção do estádio.
"Por que não investiu mais R$ 2
milhões para remover os moradores para um local menos insalubre?", pergunta o presidente da Associação de Moradores
da Comunidade Trajano de
Medeiros, Argemiro Moreira.
Segundo ele, R$ 2 milhões
eram o custo da remoção orçado pela própria prefeitura, que
chegou a apresentar o projeto
da via de acesso que seria construída no lugar dos barracos.
""Acredita que negaram até o
pedido para que as empreiteiras cedessem um trator para
retirar o lixo da entrada da favela?", diz Moreira. O secretário especial municipal para o
Pan, Ruy Cezar, contesta o líder
comunitário e diz que a remoção da favela nunca fez parte do
projeto do Engenhão.
Até a inauguração do estádio,
no dia 30 de junho, os moradores acreditavam que as autoridades fariam ""alguma obra de
maquiagem" para tornar a Belém-Belém menos tenebrosa,
mas ficou tudo igual. Os barracos podem ser avistados de parte das cadeiras do estádio.
""Dá revolta. O Engenhão tão
bonito, e nós nessa miséria. Vão
deixar essa lindeza [apontando
para o lixo] para os gringos verem?", protesta Lucilene Santos Azevedo, 24, desempregada, três filhas.
Os moradores da Belém-Belém têm histórias de vida comuns. A maioria migrou do
Nordeste ou do interior do Estado do Rio em busca de emprego. É o caso de Joana Conceição de Paula, 57, que deixou
o interior de Pernambuco há
30 anos e o máximo que conseguiu foi um barraco de alvenaria na Trajano de Medeiros. Até
esse pequeno patrimônio foi
perdido depois que um dos filhos envolveu-se no tráfico de
drogas e foi morto. "Quem se
mistura aos porcos come farelo", diz ela, em curto comentário sobre a morte do filho.
Segundo informações dos comerciantes locais, o Comando
Vermelho (facção do narcotráfico) dava as ordens nas duas
favelas até cerca de três meses.
""Agora, manda a melícia [milícia]" diz uma moradora, referindo-se a policiais e ex-policiais que derrotaram os traficantes e assumiram o controle
de várias favelas do Rio.
Crianças passam o dia fechadas nos barracos de tábua enquanto as mães trabalham como faxineiras em casas de família ou vão à rua catar alimentos doados por igrejas. Jocélia
Quintanilha, 28, tem sete filhos, de três pais diferentes.
Nenhum ajuda com dinheiro.
Ela diz que sua única fonte certa de recursos é o Bolsa Família. Durante a construção do estádio, a solidariedade veio dos
operários, que davam marmitas para as mães com crianças.
O Engenho de Dentro é um
bairro simples, dividido pela linha férrea e pela Linha Amarela. Sua origem remonta à época
imperial. O nome é uma referência aos engenhos de açúcar
que existiram na região.
O bairro ainda tem ruas de
paralelepípedo e casas com varandas de ferro trabalhado remanescentes do século 19 e da
primeira metade do século 20.
""Aqui, a vida passa devagar",
afirma a aposentada Maria
Athaíde Passos, 75.
Texto Anterior: Futebol feminino: Na estréia de Marta, seleção vê mais torcida e goleia Jamaica Próximo Texto: Empresário francês chora ao falar da favela Índice
|