São Paulo, domingo, 15 de julho de 2007

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Longe do gol

Portão de ferro separa barracos de tábua da favela Belém-Belém do Engenhão, o mais vistoso estádio construído para o Pan-Americano, em bairro antigo e decadente do Rio

ELVIRA LOBATO
DA SUCURSAL DO RIO

A obra mais vistosa do Pan tornou quase invisível a sua vizinhança mais miserável.
Um portão de ferro esconde a favela Belém-Belém dos olhares dos torcedores e turistas que chegam ao estádio João Havelange, mas não abafa os protestos de seus moradores, que contavam com a remoção para casas de alvenaria em outras áreas do Engenho de Dentro, antigo e decadente bairro da zona norte do Rio, subitamente transformado em cartão postal da cidade.
O Engenhão é a obra de maior impacto visual do Pan. A remoção havia sido prometida pela prefeitura, aos moradores, no início das obras, mas não saiu do campo das promessas.
De qualquer ponto da favela, o estádio domina a paisagem com sua estrutura colossal. O portão de acesso à favela fica em frente a uma bilheteria.
São 120 barracos de tábua construídos sobre os antigos trilhos da Rede Ferroviária Federal que davam nas oficinas de reparo de locomotivas, em cujo terreno foi construído o estádio. A ocupação começou em 1998. As famílias moram entre ratos, lacraias e lixo.
A principal queixa dos moradores é que a construção do Engenhão não os beneficiou em nada e que ninguém conseguiu emprego como peão na obra.
Ao lado da Belém-Belém há uma outra favela de alvenaria, chamada Trajano de Medeiros, com 40 anos de existência e nenhuma urbanização. As duas somam cerca de mil moradores. O Engenhão comporta um público de 45 mil pessoas.
O governo gastou R$ 380 milhões na construção do estádio. "Por que não investiu mais R$ 2 milhões para remover os moradores para um local menos insalubre?", pergunta o presidente da Associação de Moradores da Comunidade Trajano de Medeiros, Argemiro Moreira.
Segundo ele, R$ 2 milhões eram o custo da remoção orçado pela própria prefeitura, que chegou a apresentar o projeto da via de acesso que seria construída no lugar dos barracos.
""Acredita que negaram até o pedido para que as empreiteiras cedessem um trator para retirar o lixo da entrada da favela?", diz Moreira. O secretário especial municipal para o Pan, Ruy Cezar, contesta o líder comunitário e diz que a remoção da favela nunca fez parte do projeto do Engenhão.
Até a inauguração do estádio, no dia 30 de junho, os moradores acreditavam que as autoridades fariam ""alguma obra de maquiagem" para tornar a Belém-Belém menos tenebrosa, mas ficou tudo igual. Os barracos podem ser avistados de parte das cadeiras do estádio.
""Dá revolta. O Engenhão tão bonito, e nós nessa miséria. Vão deixar essa lindeza [apontando para o lixo] para os gringos verem?", protesta Lucilene Santos Azevedo, 24, desempregada, três filhas.
Os moradores da Belém-Belém têm histórias de vida comuns. A maioria migrou do Nordeste ou do interior do Estado do Rio em busca de emprego. É o caso de Joana Conceição de Paula, 57, que deixou o interior de Pernambuco há 30 anos e o máximo que conseguiu foi um barraco de alvenaria na Trajano de Medeiros. Até esse pequeno patrimônio foi perdido depois que um dos filhos envolveu-se no tráfico de drogas e foi morto. "Quem se mistura aos porcos come farelo", diz ela, em curto comentário sobre a morte do filho.
Segundo informações dos comerciantes locais, o Comando Vermelho (facção do narcotráfico) dava as ordens nas duas favelas até cerca de três meses. ""Agora, manda a melícia [milícia]" diz uma moradora, referindo-se a policiais e ex-policiais que derrotaram os traficantes e assumiram o controle de várias favelas do Rio.
Crianças passam o dia fechadas nos barracos de tábua enquanto as mães trabalham como faxineiras em casas de família ou vão à rua catar alimentos doados por igrejas. Jocélia Quintanilha, 28, tem sete filhos, de três pais diferentes. Nenhum ajuda com dinheiro. Ela diz que sua única fonte certa de recursos é o Bolsa Família. Durante a construção do estádio, a solidariedade veio dos operários, que davam marmitas para as mães com crianças.
O Engenho de Dentro é um bairro simples, dividido pela linha férrea e pela Linha Amarela. Sua origem remonta à época imperial. O nome é uma referência aos engenhos de açúcar que existiram na região.
O bairro ainda tem ruas de paralelepípedo e casas com varandas de ferro trabalhado remanescentes do século 19 e da primeira metade do século 20. ""Aqui, a vida passa devagar", afirma a aposentada Maria Athaíde Passos, 75.


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