São Paulo, terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

SONINHA

Da capacidade de se assombrar


Não se pode falar em pagar (ou ficar devendo) milhões sem lembrar o que isso realmente significa


OUTRO DIA , minha filha pequena ficou espantadíssima de saber não só que já existiram notas "de mil", como também que elas eram usadas para pagar o ônibus. Pois em determinados setores da atividade humana, como o futebol e as campanhas eleitorais, parece que estamos de volta a esses tempos de inflação galopante -falamos em milhões com incrível naturalidade, como se a quantidade de zeros à direita não representasse valores descomunais, difíceis de imaginar.
Só quando aparece um Beckham com um contrato astronômico, inumano, é que voltamos a sentir o espanto da minha filha. US$ 50 milhões por ano. Arredondando por baixo, são R$ 100 milhões. (Só no arredondamento a gente dá um desconto de quase R$ 1 milhão.) É quase o orçamento anual da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente em São Paulo. Mas essa comparação nem tem muita graça; fica mais espantosa se usarmos elementos mais palpáveis e próximos do que conhecemos. Dizer, por exemplo, que equivale a 333 apartamentos de alto padrão (ou cem mais luxuosos). Ou a 6.250 carros 0 km. Por ano. Tudo isso para um cidadão que joga futebol. Joga bem, mas não é um ET, um monstro sagrado.
Todo mundo está cansado de saber que essa grana toda não é só porque o rapaz bate uma bola; é porque sua imagem ajuda a vender títulos de sócio, camisas, chuteiras, livros, cadernos, canecas, lápis, chaveiros, meias, cuecas, jornais, revistas, direitos de TV, anúncios. Por causa dele, movimentam-se milhões e milhões, e muita gente ganha dinheiro. Ainda assim, é loucura. Ele é uma pessoa só. Milhares de trabalhadores ganham uma miséria numa oficina de costura da Indonésia para fazer as camisas que ele ajuda a vender... (Eu sei, a Nike e os outros fabricantes procuram tomar providências para evitar que haja exploração de mão-de-obra infantil e análoga à escravidão. Mesmo assim.) É muito dinheiro indo de milhões de mãos para as mãos de alguns. Milhares de empregos são gerados a partir do movimento desencadeado pela contratação do astro. Mas há desproporção absurda entre o que uns e outros têm para viver e o que precisam fazer para consegui-lo.
Como disse Zé Geraldo Couto na Folha de sábado, "ainda que seja tolo e inútil, este texto é, sim, um lamento contra o desconcerto do mundo".

Caso Nilmar
Comparados com os do Beckham, os 8 milhões que o Lyon cobra pela transferência do Nilmar parecem mixaria. Claro que não são. E me parece absurdo que o advogado recém-dispensado diga que "tudo o que eu quero é que o Corinthians não pague os 8 milhões". "A linha de defesa que segui foi para isso." Nilmar tinha contrato com o clube francês. Para ser liberado antes do fim do compromisso, precisaria pagar a multa rescisória. Ou ele, ou alguém interessado em contratá-lo. O Corinthians/MSI (seja lá o que for isso) foi lá, pagou uma parcela e simplesmente não pagou o resto. O Lyon liberou o jogador como a loja de eletrodomésticos entrega uma geladeira: contando que iria receber o valor total.
Para segurar o jogador no Brasil, o Corinthians brande um contrato assinado, vai à Justiça e obriga a CBF a reconhecer o atacante como "seu". Para não ter de pagar nada ao Lyon, vai à Fifa e diz "não temos vínculo com ele". É incrível.
Essa liberalidade com que se fala e se lida com dinheiro, pessoas, deveres, direitos, regras e estatutos é um dos fatores que levam os clubes à bancarrota. É preciso dose bem maior do tão falado profissionalismo, sem perder características boas do amadorismo, como a capacidade de se assombrar, feito criança, com montanha de dinheiro.

soninha.folha@uol.com.br


Texto Anterior: Palmeiras oficializa 2 e ainda luta por Gustavo
Próximo Texto: Por título, times reduzem férias
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.