São Paulo, domingo, 16 de outubro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FUTEBOL

Time humilde de bairro nobre da capital paulista está perto de subir para a primeira divisão do Paulista feminino

Vizinhas da Daslu fazem Itaim jogar bola

Fernando Moraes/Folha Imagem
A goleira Marli defende bola no campo do Canto do Rio


PAULO COBOS
DA REPORTAGEM LOCAL

"Um dia eu vou ganhar dinheiro no futebol para entrar lá e comprar um monte de roupa."
A atacante Aline, 19, faz essa promessa vestindo um dos únicos dois surrados uniformes do Canto do Rio, um time de futebol feminino para lá de modesto encravado numa das zonas mais exclusivas da capital paulista.
O "lá" a que ela se refere é onde trabalha uma companheira de time, a zagueira Rose, que por ser forte ganhou o apelido de "trator". Aline, Rose e o Canto do Rio são vizinhos da Daslu, que é só um dos itens que transformam o clube em um estranho no ninho no Itaim, bairro com um IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de primeiro mundo.
O varzeano clube, que leva esse nome por ficar na beira do córrego do Sapateiro, na badalada avenida Juscelino Kubitschek, garimpou um time feminino para pela primeira vez trocar a várzea por um campeonato oficial da federação paulista, que tenta turbinar o futebol feminino em São Paulo.
E os resultados são animadores. Com mais duas vitórias, o time vai conseguir o acesso para a primeira divisão do Estadual.
Nada no clube, no entanto, lembra a opulência dos vizinhos.
O campo está quase todo careca, com grama apenas nas laterais (a diretoria preferiu não reformá-lo neste ano para investir em canchas de bocha, que são alugadas).
Salário não existe, assim como treinos -as jogadoras se reúnem duas horas antes de a bola rolar.
As viagens para o interior são mambembes. O time foi para Presidente Prudente, a mais de 500 km de distância, no mesmo dia do jogo e voltou logo após o fim dele, fazendo as refeições no ônibus.
Na primeira rodada, não conseguiu realizar uma partida em casa por falta de ambulância e médico, conforme manda o regulamento.
A aventura do Canto do Rio no Paulista custa cerca de R$ 2.000 mensais, ou menos do que pode valer uma calça jeans na Daslu.
Alugando uma quadra e um salão de festas para 400 pessoas, o clube tem uma receita mensal de R$ 14 mil, mas quase nada dela é investida no time feminino.
Quem banca a maior parte do investimento na equipe é Alcides Magri, o dono de uma oficina mecânica, que freqüenta o Canto do Rio desde a década de 50.
"Nós ainda vamos chegar longe", crê Magri, que lamenta a falta de apoio da endinheirada vizinhança. "Praticamente ninguém nos ajudou [uma farmácia do bairro forneceu o uniforme]", diz o cartola, que resolveu financiar o time apesar da desconfiança inicial de alguns sócios -poucos abastados- do clube, que tem em moradores antigos do Itaim, hoje em bairros mais modestos após a explosão imobiliária da região, o grosso de seus associados.
José Dias e Sérgio Bragança, ex-diretores do São Paulo, freqüentam do Canto do Rio. Mas eles não interferem no time feminino.
Além de Magri, a equipe vive de contribuições esporádicas, quase sempre inferiores a R$ 100, e de "bicos" de conhecidos, como os médicos que agora dão plantão nos jogos da equipe.
Se o Itaim dá as costas para o clube, ele serve como uma espécie de imã para as jogadoras. A maioria delas vive em bairros pobres da zona sul, como o Jardim São Luiz e o Jardim Ângela.
"Já passei apertos em campos da periferia. Fiquei com muito medo. Aqui o pessoal nos respeita muito", declara Aline, que é a maior jóia do clube -foi convocada para defender a seleção brasileira sub-19. Para isso, teve que deixar o emprego no Mc'Donalds -agora vai trabalhar em uma empresa de telemarketing.
"Tenho 22 anos de futebol, e em nenhum lugar fui tão respeitada como aqui", diz a meia Salete, 36, que tem o apelido de Oséas e já passou por clubes grandes, como Palmeiras e Portuguesa.
As duas falam isso em um ambiente quase que exclusivamente masculino. Nos últimos jogos da equipe, até 800 pessoas se acotovelaram no alambrado que protege o "gramado" -o campo não tem nenhuma arquibancada.
Sonhando com o dia em que vão ganhar dinheiro jogando futebol, as jogadoras do Canto do Rio, que são treinadas por uma mulher, têm, além da vaga na primeira divisão do Paulista, um outro objetivo nesta temporada.
Por intermédio da colega Rose, que presta serviços como bombeira e segurança na Daslu, elas querem marcar um amistoso com as funcionárias da loja de luxo. "Quem ganhar leva roupas da loja", brinca Salete.


Texto Anterior: O personagem 2: Mais "zagueiro", Marcelo Mattos volta à equipe
Próximo Texto: Clube fica em área disputada nos tribunais
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.