São Paulo, sábado, 17 de janeiro de 2009

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JOSÉ GERALDO COUTO

O dilema de Kaká


A oferta tentadora do Manchester City testa os limites da liberdade de escolha no mundo atual

DINHEIRO NA mão é vendaval, já dizia o poeta. Imagino o dilema íntimo que Kaká está vivendo, diante da oferta astronômica do Manchester City para tirá-lo do Milan.
A escolha é entre permanecer num dos clubes mais gloriosos do planeta, onde ele brilha intensamente, convive bem com os colegas e é amado pelos torcedores (80% deles querem sua permanência no time a qualquer custo), ou trocar de camisa e de país por um punhado de dólares a mais. Na verdade, alguns milhões a mais, mas que diferença faz para quem já é milionário?
De quebra, se aceitar a proposta, Kaká deixará a bela e charmosa Milão pela cinzenta Manchester. O dinheiro é importante, mas o lugar onde se vive e trabalha também é, ou não?
Sei que o mundo se deixou contagiar pela plutomania ("fixação patológica em riqueza", segundo o Houaiss), mas pense bem: se o único objetivo na vida é o acúmulo de mais e mais dinheiro, o que acontece com a vida em si, quero dizer, em que momento a gente vive de verdade?
Digamos que um sujeito célebre como Kaká goste, por exemplo, de jogar pingue-pongue. Que isso seja um prazer gratuito que ele traz desde a infância. Um belo dia, seu assessor ou agente percebe esse gosto e cochicha sobre o seu ombro: "Rapaz, por que você não aproveita isso para ganhar uma grana dos fabricantes de raquetes e bolinhas?".
No dia seguinte, quando Kaká vai dar suas raquetadas, está presente uma equipe de filmagem, um representante de cada um dos tais fabricantes, mais uma ONG qualquer para a salvação de crianças carentes por meio do pingue-pongue e, se bobear, o Mauro Naves. Pronto: aquilo que era um mero prazer lúdico e desinteressado se transformou num modo de ganhar e produzir dinheiro. Virou uma forma de trabalho.
Claro que essa situação é inventada -nem sei se Kaká gosta de pingue-pongue. Mas é verossímil no atual contexto. A margem para as escolhas e os gostos individuais, para o gozo livre e puro da vida, está cada vez mais estreita.
Lembra daquele filme "Proposta Indecente"? Robert Redford era um magnata que oferecia US$ 1 milhão para que Demi Moore, moça casada e fiel, fosse para a cama com ele.
Na época, a maior parte do público se dividiu em dois comentários. O primeiro, dito geralmente por mulheres, era: "Para o Robert Redford, eu dava até de graça". O outro, por ambos os sexos: "Por US$ 1 milhão, até eu dava pro Robert Redford".
A meu ver, a primeira resposta é mais interessante, porque denota um desejo íntimo, ainda que esse desejo seja induzido em boa parte pela publicidade, pelos padrões reinantes de beleza etc. A segunda é de uma pobreza atroz.
O dilema de Kaká é diferente, não só porque os milhões em questão são muitos, mas, sobretudo, porque não se trata de prostituição. Não há uma questão moral em jogo, mas sim, digamos, espiritual.
Torço sinceramente para que Kaká cumpra o que disse dias atrás e "envelheça" no Milan, a exemplo de outros grandes, como Baresi e Maldini. Se ele sucumbir ao peso das libras, não terá vendido a alma ao diabo, mas ao perverso deus do dinheiro, o que é igualmente triste.

jgcouto@uol.com.br


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