São Paulo, segunda-feira, 17 de junho de 2002

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Turista ocidental

Yumi uma garota do brasil

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A KOBE

Das 21h às 5h, o horário do batente, ela é Yumi, 23. De dia, quando passa a maior parte do tempo dormindo, tem outro nome, em português. A identidade é desconhecida dos clientes e até do patrão. Consta do passaporte brasileiro e do visto de trabalho válido por três anos renováveis emitido pelo Japão. A licença não contempla a atual atividade profissional, exercida ilegalmente.
Yumi é recepcionista num lounge, o salão frequentado por senhores abastados em busca de um lugar discreto com garotas bacanas que lhes façam companhia. Elas conversam, dão beijinhos, trocam carícias, mostram de soslaio partes ocultas do corpo, dançam e bebem junto.
Principalmente, marcam encontros que acabam na cama. Por um bom dinheiro. ""Sou uma anfitriã que mostra o que a noite tem de melhor", define-se a imigrante do interior de São Paulo que vive de se prostituir.
Yumi é sansei, neta de japoneses por um ramo familiar e de europeus por outro. Há dois anos, nas pegadas de parentes, trocou a vida de comerciária (de dia) e estudante do ensino médio (à noite) no Brasil por um posto de operária na linha de produção de uma indústria de motores na região de Osaka, a 20 minutos de trem de Kobe, cidade onde hoje a seleção brasileira enfrenta a belga pelas oitavas-de-final da Copa.
Ganhava R$ 18 por hora. Dava duro 12 horas por dia em busca do rendimento de horas extras que lhe permitiam sustentar parte da família que ficou no Brasil. Passou a sofrer de problemas musculares. Vivia com dor. Bonita, era assediada pelo chefe.
""Vim para cá com um sonho: comprar uma casa e permitir que a minha família tivesse uma vida melhor. Mas o sonho cresce com o tempo. Leva a fazer coisas diferentes dos nossos antigos valores. A gente nunca se contenta com o que tem."
Passou a ouvir de amigas brasileiras que poderia faturar bem mais na noite. Os lounges não são propriamente prostíbulos. Não há sexo lá. Quanto mais clientes o frequentam para ver determinada anfitriã, maior o salário dela.
Yumi perdeu a virgindade aos 14 anos de idade, com o primeiro namorado. Nunca pensou em ganhar dinheiro com o corpo. Guarda o trauma da infância e da adolescência quando se sentia discriminada por ""ter o olho puxadinho". ""Eu era a Japa, a Japinha". Mas os seus traços são mais ocidentais. ""Aqui no Japão os homens ficam loucos com estrangeira, ainda mais quando tem seios e nádegas grandes."
Na primeira noite no lounge, se desesperou e teve vontade de chorar quando um homem bêbado baixou as calças. Aprendeu a administrar desesperados. A deixar darem ""uma olhadinha" pelo decote. ""Sem ir longe de cara, ele volta e investe mais".
Passou a ganhar R$ 67 por hora, fora os programas. ""Faço tudo para agradar. Se alguém se apaixona por mim, dá mundos e fundos". Já embolsou R$ 16 mil em dinheiro vivo, como presente. ""Minto que sou só dele. Mas uma hora, quando já fizeram todo o sexo que queriam, vão embora".
Durante temporadas, recebeu R$ 5.600 de mesada de clientes do lounge que se tornaram amantes. Os rendimentos são altos porque, desde cedo, Yumi foi avisada de que trabalhar em bordéis não vale a pena. ""O dono fica com 70% de tudo que se recebe".
Só em Kobe (pronuncia-se ""Kôbe") e Minami, bairro de Osaka, mais de 100 brasileiras fazem programas, diz Yumi. Uma foi assassinada por um cliente. Outra apanhou tanto que acabou num hospital. ""Morro de medo, eles não dizem nem o sobrenome, só dão o celular. Não sei se vou voltar viva." Anda com uma maquininha de choque, mas nunca a usou.
Há 12 meses na noite, se apaixonou uma única vez por um cliente. Segundo Yumi, é um membro da Yakuza, a máfia japonesa que cobra propina para liberar o funcionamento do comércio, trafica drogas e organiza a prostituição. Como todo Yakuza, tinha o corpo coberto de tatuagens. ""Elas são feitas em preto e branco. Conforme a pessoa vai subindo na hierarquia, os desenhos vão sendo pintados". Ganhou do mafioso anéis, brincos e correntes com diamantes e pérolas. Não está mais com ele, embora ainda se vejam. Quando isso ocorre, ele não lhe paga pelos préstimos, ""mas contribuiu com uma ajuda".
Os clientes deixam de R$ 1.100 a R$ 2.700 por noite no caixa do lounge. Como os clubs, este difere-se dos sunakos (corruptela japonesa para ""snack bar") pelas posses dos frequentadores. Na privacidade com eles, Yumi diz querer ""parecer o máximo". ""Depois, me sinto um lixo".
Os finalmentes costumam ocorrer no terceiro encontro, depois de a brasileira confirmar que ""o cara tem grana". Ela afirma exigir camisinha sempre. À família, diz ser garçonete. ""Eu me puno, sacrifico a minha vida para que as pessoas que eu amo nunca tenham que passar por isso."
Para suportar o desgaste, entorna três copos de cerveja, cinco de tequila e dois de vinho por jornada. Num roteiro-padrão mundial, espera encontrar o príncipe que a leve embora. Constata, contudo, ""que só amor não enche barriga". Ela é um dos 260 mil brasileiros ("dekasseguis") que vivem no Japão, na maioria empregados de indústrias.
Tem acumulado um bom pé-de-meia. Não se deixa fotografar. Acalenta o sonho de, em dois anos, voltar para o Brasil. ""Vou retomar os estudos, ser advogada, recomeçar. E tentar esquecer essa vida de hoje, se é que algum dia vou conseguir."



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