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Turista ocidental
Yumi uma garota do brasil
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A KOBE
Das 21h às 5h, o horário do batente, ela é Yumi, 23. De dia,
quando passa a maior parte do
tempo dormindo, tem outro nome, em português. A identidade é
desconhecida dos clientes e até do
patrão. Consta do passaporte brasileiro e do visto de trabalho válido por três anos renováveis emitido pelo Japão. A licença não contempla a atual atividade profissional, exercida ilegalmente.
Yumi é recepcionista num lounge, o salão frequentado por senhores abastados em busca de um
lugar discreto com garotas bacanas que lhes façam companhia.
Elas conversam, dão beijinhos,
trocam carícias, mostram de soslaio partes ocultas do corpo, dançam e bebem junto.
Principalmente, marcam encontros que acabam na cama. Por
um bom dinheiro. ""Sou uma anfitriã que mostra o que a noite tem
de melhor", define-se a imigrante
do interior de São Paulo que vive
de se prostituir.
Yumi é sansei, neta de japoneses
por um ramo familiar e de europeus por outro. Há dois anos, nas
pegadas de parentes, trocou a vida de comerciária (de dia) e estudante do ensino médio (à noite)
no Brasil por um posto de operária na linha de produção de uma
indústria de motores na região de
Osaka, a 20 minutos de trem de
Kobe, cidade onde hoje a seleção
brasileira enfrenta a belga pelas
oitavas-de-final da Copa.
Ganhava R$ 18 por hora. Dava
duro 12 horas por dia em busca do
rendimento de horas extras que
lhe permitiam sustentar parte da
família que ficou no Brasil. Passou
a sofrer de problemas musculares. Vivia com dor. Bonita, era assediada pelo chefe.
""Vim para cá com um sonho:
comprar uma casa e permitir que
a minha família tivesse uma vida
melhor. Mas o sonho cresce com
o tempo. Leva a fazer coisas diferentes dos nossos antigos valores.
A gente nunca se contenta com o
que tem."
Passou a ouvir de amigas brasileiras que poderia faturar bem
mais na noite. Os lounges não são
propriamente prostíbulos. Não
há sexo lá. Quanto mais clientes o
frequentam para ver determinada
anfitriã, maior o salário dela.
Yumi perdeu a virgindade aos
14 anos de idade, com o primeiro
namorado. Nunca pensou em ganhar dinheiro com o corpo. Guarda o trauma da infância e da adolescência quando se sentia discriminada por ""ter o olho puxadinho". ""Eu era a Japa, a Japinha".
Mas os seus traços são mais ocidentais. ""Aqui no Japão os homens ficam loucos com estrangeira, ainda mais quando tem seios e
nádegas grandes."
Na primeira noite no lounge, se
desesperou e teve vontade de chorar quando um homem bêbado
baixou as calças. Aprendeu a administrar desesperados. A deixar
darem ""uma olhadinha" pelo decote. ""Sem ir longe de cara, ele
volta e investe mais".
Passou a ganhar R$ 67 por hora,
fora os programas. ""Faço tudo
para agradar. Se alguém se apaixona por mim, dá mundos e fundos". Já embolsou R$ 16 mil em
dinheiro vivo, como presente.
""Minto que sou só dele. Mas uma
hora, quando já fizeram todo o sexo que queriam, vão embora".
Durante temporadas, recebeu
R$ 5.600 de mesada de clientes do
lounge que se tornaram amantes.
Os rendimentos são altos porque,
desde cedo, Yumi foi avisada de
que trabalhar em bordéis não vale
a pena. ""O dono fica com 70% de
tudo que se recebe".
Só em Kobe (pronuncia-se ""Kôbe") e Minami, bairro de Osaka,
mais de 100 brasileiras fazem programas, diz Yumi. Uma foi assassinada por um cliente. Outra apanhou tanto que acabou num hospital. ""Morro de medo, eles não
dizem nem o sobrenome, só dão o
celular. Não sei se vou voltar viva." Anda com uma maquininha
de choque, mas nunca a usou.
Há 12 meses na noite, se apaixonou uma única vez por um cliente. Segundo Yumi, é um membro
da Yakuza, a máfia japonesa que
cobra propina para liberar o funcionamento do comércio, trafica
drogas e organiza a prostituição.
Como todo Yakuza, tinha o corpo
coberto de tatuagens. ""Elas são
feitas em preto e branco. Conforme a pessoa vai subindo na hierarquia, os desenhos vão sendo
pintados". Ganhou do mafioso
anéis, brincos e correntes com
diamantes e pérolas. Não está
mais com ele, embora ainda se vejam. Quando isso ocorre, ele não
lhe paga pelos préstimos, ""mas
contribuiu com uma ajuda".
Os clientes deixam de R$ 1.100 a
R$ 2.700 por noite no caixa do
lounge. Como os clubs, este difere-se dos sunakos (corruptela japonesa para ""snack bar") pelas
posses dos frequentadores. Na
privacidade com eles, Yumi diz
querer ""parecer o máximo". ""Depois, me sinto um lixo".
Os finalmentes costumam ocorrer no terceiro encontro, depois
de a brasileira confirmar que ""o
cara tem grana". Ela afirma exigir
camisinha sempre. À família, diz
ser garçonete. ""Eu me puno, sacrifico a minha vida para que as
pessoas que eu amo nunca tenham que passar por isso."
Para suportar o desgaste, entorna três copos de cerveja, cinco de
tequila e dois de vinho por jornada. Num roteiro-padrão mundial,
espera encontrar o príncipe que a
leve embora. Constata, contudo,
""que só amor não enche barriga".
Ela é um dos 260 mil brasileiros
("dekasseguis") que vivem no Japão, na maioria empregados de
indústrias.
Tem acumulado um bom pé-de-meia. Não se deixa fotografar.
Acalenta o sonho de, em dois
anos, voltar para o Brasil. ""Vou
retomar os estudos, ser advogada,
recomeçar. E tentar esquecer essa
vida de hoje, se é que algum dia
vou conseguir."
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