São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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"São 8 anos com ele, estou cheio de ser um subalterno"

Nas primeiras seis semanas após o escândalo de Colorado ter estourado, eu não conversei com Kobe [Bryant]. Ele nunca ligou de volta. Considerando suas ansiedades, não fiquei ofendido. Kobe faria confidências só para as pessoas em que confiava, e não era meu caso. Mitch [Kupchak, gerente-geral do LA Lakers] e eu matutávamos se ele poderia abdicar da temporada.
Não precisamos pensar demais: recebemos recado do pessoal de Kobe avisando que ele pretendia lidar com a temporada que estava por vir como qualquer outra.
Emfim, no início desta semana, Kobe apareceu. Parecia desolado e bem mais magro. Ele joga basquete desde os 3 anos. Ama o jogo. Perceber que ele não estava bem fisicamente foi um choque.
"Nós queremos que você saia dessa. Está tendo ajuda?", questionei. "Tem com quem se abrir?"
"Não."
Não abordamos o problema dele. Estávamos ali para falar sobre os ajustes para tornar bem-sucedida a próxima temporada.
"Neste ano, não vou engolir nenhum sapo de Shaq [Shaquille O'Neal]", afirmou Kobe. "Se ele começar a falar coisas pela imprensa, rebaterei. Estou farto."
Olheio-o nos olhos e dei-lhe um abraço. Não importava o que havia acontecido no passado, ele era um membro da família Lakers.
"Shaq não me telefonou neste verão", disse Kobe a Mitch.
"Kobe, eu te passei uma mensagem dele", respondeu Mitch. "Ele te convidou para ir a Orlando para esfriar a cabeça."
"Ele não tem que enviar mensagens. Sabe como me achar."
O diálogo revelou a contradição na atitude de Kobe em relação a Shaq, uma evidência de uma dicotomia muito mais ampla em sua psique. Por um lado, insistia que não iria mais engolir o que o grandalhão fizesse; por outro, mostrava que se importava, sim, com o que o grandalhão fazia.
Decidi contratar um terapeuta para me ajudar a lidar com o que eu via que seria a mais turbulenta temporada de minha carreira como treinador. Selecionei um que tem lidado com comportamento narcisista em sistemas de ensino público de Los Angeles. Ele se sentirá em casa aqui.
 
Desde que as acusações foram feitas, Kobe tem sido tratado de forma extremamente afável pelos Lakers. Nós concordamos em cobrir uma porcentagem de seus gastos com as viagens para Colorado, local das audiências. Isso custará milhares de dólares. Kobe mostrou-se insatisfeito com o tipo de avião escolhido -queria um mais sofisticado.
 
Depois de três vitórias e cinco derrotas na pré-temporada, começamos a treinar duro poucos dias atrás para o jogo de abertura, diante do Dallas.
Sendo este time os Lakers, a mais antiga novela em exibição no esporte profissional, tem havido muito intriga nos bastidores nas últimas 72 horas. As estrelas do mais recente capítulo? Kobe Bryant e Shaquille O'Neal, óbvio.
Soube das notícias enquanto assistia a um vídeo dos Mavericks. Bateram na porta. Kobe entrou.
"Ele começou."
Não precisei perguntar quem era "ele". "Você está brincando."
Estava no jornal Shaq sugerindo que Kobe precisava confiar mais em seus colegas até estar novamente em totais condições.
"Kobe, o que há de errado nisso? Shaq está certo. É exatamente o que queremos que você faça."
Depois do treino, Kobe atirou de volta em Shaq, pela imprensa, exatamente como prometera. "Eu não preciso de conselhos sobre como devo jogar. Sou armador, sei como atuar ali. Ele deve se preocupar com o garrafão."
A guerra começava.
"Ele não precisa de aconselhamento para atuar em sua posição", afirmou Shaq. "Mas sim sobre como atuar coletivamente. Se é meu time, darei minha opinião. Se ele não gosta, pode cair fora."
E assim foi, os dois protagonistas em plena forma. Por que não se entendiam? Tenho minhas teorias. Uma delas é que Shaquille ganha um dinheiro -cerca de US$ 25 milhões/ano- que Kobe nunca irá ganhar devido às alterações no acordo trabalhista da liga.
Os jornais, nem é preciso dizer, têm tratado da rixa Kobe-Shaq como se fosse uma nova versão de Caim x Abel. "É o retorno de "Guerra nas Estrelas'" foi a manchete do "Los Angeles Times".
O que os Lakers pudessem fazer para controlar o monstro, teriam de fazer rápido. Telefonei para o terapeuta. "Coloque-os a par [da situação]", recomendou. "Diga-lhes que as coisas que estão dizendo sobre o outro não estão fazendo bem a ninguém." Ele mencionou um termo psicológico para essa estratégia de controle de danos: supressão. Puxei Shaq de lado, e Mitch ficou com Kobe.
Shaq não parecia disposto a suprimir nada. "Phil, eu tenho um meio-irmão", disse ele, "e quando era jovem, eu era o pária. Tudo que eu fazia era errado, e tudo que ele fazia era certo. É o mesmo com Kobe. Sou criticado por tudo. Fico como o vilão da história, e ele pode fazer o que bem entende. Gostaria de esmurrá-lo."
Disse a Shaq que o compreendia, mas também que era necessário deixar essa rixa para trás logo. Ele concordou em silenciar.
Esta era uma outra diferença básica entre ele e Kobe. Peça a Shaq para fazer uma coisa, e ele dirá: "Não, não quero." Mas, depois de fazer um pouco de manha, acata. Peça a Kobe, e ele dirá: "Ok." E então fará o que quer.
Contra nossas instruções, Kobe concedeu uma entrevista avisando que, se ele deixar os Lakers, será devido "ao egoísmo infantil e às atitudes ciumentas" de Shaq.
Demais para a supressão.
 
No caminho à quadra, perguntei a Kobe, que se recuperava de lesão, se estava pronto para correr. Claro, ele respondeu, logo depois do tratamento.
Passou-se quase uma hora, nem sinal de Kobe. Finalmente, com um saco de gelo no ombro, ele sentou-se ao lado da quadra. Comecei a desconfiar que Kobe não tinha a menor intenção de correr.
Encerrado o treino, segui-o até o vestiário e indaguei o porquê de ter mentido para mim. Ele estava sendo sarcástico, foi a resposta.
Resposta errada. Eu não estava para brincadeiras. Fui até o escritório de Mitch. Falei sobre a necessidade de negociar Kobe. "Não estarei no comando deste time na próxima temporada caso ele esteja aqui", disparei, enfaticamente. "Ele não irá escutar ninguém. Estou cheio desse moleque."
 
Quando Shaq e Rick [Fox] desceram do ônibus perto de nosso hotel em Miami, eu pedi que fossem ao meu quarto para uma rápida reunião.
Em um treino na véspera, Kobe, que havia dito que seu dedo não estava bom o suficiente para atuar, estava arremessando com a mão esquerda quando eu lhe disse para que não se tornasse uma distração [para os outros]. Eu precisava trabalhar com os jogadores que iriam para o jogo.
"Distração", disse ele, em tom de zombaria, incapaz de resistir a dar mais um arremesso.
Shaq e Rick sentaram-se. Fui direto ao ponto. "O que vocês acham da idéia de eu oferecer a Kobe uma licença excepcional?"
Eles também não perderam tempo. Kobe, presumiam eles, contribuiria com o time tão logo recuperado da contusão no dedo.
Foi gratificante notar o genuíno senso de compaixão, especialmente vindo de Shaq, que era um suposto inimigo de Kobe.
A imprensa, com seu sensacionalismo, com a cobertura insulto a insulto, captou somente um componente de uma relação bastante complicada entre dois orgulhosos superastros. Shaq e Kobe nunca serão amigos, porém eles permanecem unidos por uma meta comum, cada um sabendo no íntimo que não tem como triunfar aqui sem o outro.
 
Um bate-papo com Kobe revela freqüentemente uma de suas muitas tendências narcisistas.
Após eu ter dito que acreditava que ele e Shaq tinham mostrado que poderiam jogar juntos com eficiência, ele provou isso no Jogo das Estrelas -Shaq brilhou. "Eu consegui que ele conquistasse o prêmio de MVP [melhor jogador]", disse Kobe. "Sei fazer de Shaq o melhor."
Aí Kobe expressou sua desaprovação pela ausência de Shaquille no treinamento do dia. "Isso mostra que tipo de líder ele é."
Ele estava irritado com as permissões que os Lakers davam para Shaq, sem notar a hipocrisia de suas acusações. Ninguém, neste ano, ou em qualquer outro em que eu fui treinador, recebeu mais "permissões" do que Kobe.
 
A menos de uma semana para os mata-matas, estamos distantes. No centro da confusão está -quem mais?- Kobe.
Desta vez, está sendo crucificado por acertar poucos arremessos: só um no primeiro tempo do duelo em Sacramento, quando arruinamos as chances de ganhar a divisão. Ele fez só oito pontos.
A teoria que está sendo lançada é que Kobe, acuado pelas críticas, decidiu mostrar como o ataque pode ficar quando ele não pontua. "Não sei como podemos perdoá-lo", citou um anônimo companheiro de time no "LA Times".
Kobe foi de jogador a jogador e atirou o artigo em suas caras. "Você falou isso?", questionou a cada um. Mais tarde, retomou o inquérito. "Aqui e agora", disse, levantando a voz, "quero saber quem falou essa merda".
Ninguém disse uma palavra.
"Você sente que estará de volta no ano que vem?", Jeannie [Buss, filha do dono dos Lakers e namorada de Phil] perguntou-me.
"Não se Kobe estiver no time. Ele é uma pessoa muito complexada. Não preciso disso."
 
Este é um dia que jamais esquecerei. Pela manhã, encontrei-me com Kobe. À tarde, com o doutor Buss [Jerry, dono dos Lakers]. À noite, estava desempregado.
Kobe veio a meu escritório. Não conseguia tirar da cabeça meu encontro com ele em fevereiro, quando havia uma grande tensão. Desta vez a mesma tensão não existia. Ambos sabíamos que eu nunca mais seria seu técnico.
Mitch chegou. Disse para Kobe como eu estava satisfeito com sua habilidade para colocar de lado nossas desavenças depois da reunião de fevereiro e com seu comprometimento para a temporada.
Eu então comecei a fazer as perguntas que realmente queria.
"Minha presença ou ausência exerce influência no seu desejo de renovar com os Lakers?"
Ele afirmou que eu deveria decidir sem levar isso em conta.
"Estou caindo fora", sentenciei.
"Fala sério?"
Fiz sinal de afirmativo com a cabeça. O próximo ponto era Shaq. "A presença de Shaq influencia sua decisão de seguir no time?"
"Sim, não há dúvida. Tive que suportar oito anos com ele. Estou cheio de ser um subalterno."
Escutar isso da boca dele, ouvir Kobe dizer "subalterno", realmente me chocou.
Compreendo por que os Lakers vêem Kobe como seu mais valioso tesouro. O garoto vai fazer 26 anos em agosto. Sua habilidade para transformar um jogo, para fazer uma jogada impossível, é incomparável. Mas é preciso deixar claro que Kobe é ainda um funcionário. E que ele precisa de orientação que o ajude a amadurecer e a se transformar no tipo de adulto que se espera que ele seja.
Kobe está se perdendo ao não achar um caminho para se integrar a um sistema que exige que você ofereça algo maior do que você mesmo. Ele pode ter sido o sucessor natural e talvez ganhar tantos campeonatos quanto Michael Jordan. Mas a imagem de herói da garotada deu lugar à de um cruel matador profissional.


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