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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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Natalie du Toit, sul-africana que perdeu parte da perna em um acidente, pode nadar nos Jogos e fazer história

Amputada abre caminho para Atenas-04

GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL

Faltou Pouco. Dois minguados segundos separaram Natalie du Toit do índice para nadar os 800 m livre na Olimpíada de Sydney-2000. Depois de deixar a piscina, a atleta esqueceu a frustração e lançou um desafio pessoal: aumentaria o vigor dos treinos para não perder a vaga nos Jogos de 2004.
Ela deve cumprir o vaticínio. Aos 19 anos, é a melhor nadadora da África do Sul em suas provas. Um fato, porém, pode transportar essa trajetória aparentemente comum para a história olímpica.
Em 2001, Natalie teve parte da perna esquerda decepada após um acidente em Cape Town, cidade onde vive com a família.
Agora, com grandes chances de competir em Atenas, no ano que vem, ela pode eternizar seu nome. Um competidor amputado nunca conseguiu entrar na disputa olímpica em modalidades que exigem coordenação de todos os membros, como é o caso da natação.
"Depois de perder minha perna, continuei acreditando que tinha condições de nadar torneios para atletas sem restrições físicas. Quero conseguir um lugar em Atenas e provar que minha deficiência não traz nenhuma limitação", contou a competidora à Folha.
Em janeiro, Natalie cravou 9min02s56 nos 800 m livre, tempo inferior ao índice mínimo exigido pela Federação Internacional de Natação para Atenas. A marca, contudo, foi lograda em evento não-oficial. Agora, para carimbar o passaporte, ela precisa triunfar na seletiva sul-africana, que será realizada em abril, com uma marca inferior a 9min02s79.
"Sei que tenho a opção de competir na Paraolimpíada [torneio exclusivo para deficientes], mas confesso que é apenas uma segunda opção. Vou em busca da vaga a todo custo", afirmou.
O pensamento voltado para o futuro faz com que ela rememore sem dor ou remorso os detalhes ainda frescos do acidente que mudou os rumos de sua vida.
Fevereiro de 2001. Manhã chuvosa. Após a primeira sessão de treinos do dia, Natalie montou em sua moto e deixou o Instituto de Ciências do Esporte no bairro de Newsland. Seguia em direção a escola, quando, súbito, uma senhora invadiu sua pista e bateu com o carro direto em sua perna.
Natalie foi internada inconsciente no Hospital Constantiaberg. A perna esquerda, com uma gangrena, precisou ser amputada do joelho para baixo. A atleta só recobrou a consciência uma semana após a internação.
"O efeito dos sedativos passou e só então entendi que havia perdido parte da perna. Tudo aquilo era muito estranho, mas, mesmo assim, eu só queria saber de nadar, de sair logo do hospital."

De volta
Pouco mais de dois meses após o acidente, o técnico Karoly Van Torus topou com sua pupila na beira da piscina. Era o recomeço.
"Sempre concentrei boa parte da força nos braços e, por isso, achava que não teria muitos problemas. Só que acabei perdendo totalmente o centro de gravidade e não conseguia encontrar um jeito de me postar na água", relatou.
O fato tem explicação técnica. Segundo Alberto Klar, coordenador técnico de natação do Pinheiros, as pernas asseguram propulsão, sustentação e equilíbrio.
"De uma só vez, ela perdeu tudo isso. É preciso estudar biomecânica e fazer experiências para reconstruir a noção espacial aquática de um atleta", contou Klar.
Natalie e seu treinador encontraram uma saída simples. Todos os dias, ela nadava em círculos na piscina. Aos poucos, se acostumou ao novo peso do corpo.
Dali em diante, deslanchou. Em 2002, nos Jogos da Comunidade Britânica, chegou à final dos 800 m livre. Pela primeira vez na história uma amputada nadava entre as oito melhores competidoras de um evento de alto nível.
Em Abuja, na Nigéria, no início deste mês, nova façanha para registrar no currículo. Natalie chegou ao lugar mais alto do pódio nos 800 m livre. O tempo obtido na ocasião, 9min09s66, a deixaria em um honroso quinto lugar no último Campeonato Brasileiro.
"Não há explicação lógica para os tempos que essa moça registra. Ela é um milagre", disse Klar.
Não por acaso, a sul-africana procura na biografia de Lance Armstrong a força que precisa para continuar sua caminhada.
O ciclista norte-americano teve câncer nos testículos, mas superou a doença e hoje é o nome mais proeminente de sua seara. "Acho que meu segredo é o mesmo que o dele: jamais pensamos em parar."



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