São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2010

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ENTREVISTA JOSÉ MOURINHO

Graças a Deus, não sou modesto. Isso não ajuda em nada

TÉCNICO DO REAL MADRID, CANDIDATO A MELHOR DO MUNDO, FALA SOBRE A FAMA DE ARROGANTE E AFIRMA QUE SEU DEFEITO É "NÃO SER HIPÓCRITA"

VINCENT MACHENAUD
DA "FRANCE FOOTBALL"

Em um fim de tarde de terça-feira, meu celular tocou. Era um amigo português. "Mourinho aceitou conversar. Se puder viajar, ele o receberá amanhã. E terá bastante tempo para conversar."
Cinco horas e um voo depois, quase meia-noite, um táxi me deixou no centro de Madri, na Espanha. Na manhã seguinte, Miguel, o taxista da noite anterior, esperava-me sorridente.
"Madridista", é fã de Zidane e sonha em dirigir para ele. "Tenho uma camisa no porta-malas para pedir um autógrafo." Mas não é tão fã de José Mourinho. "Ele fala demais. Mas vem fazendo um trabalho muito bom."
No CT do Real Madrid em Valdebebas, o diretor de imprensa do time, Oscar Ribot, disse que teríamos "de 20 a 25 minutos" de conversa. "Não se esqueça de que as respostas dele são longas."
Mourinho não demorou a chegar. Aproximou sua cadeira da minha e perguntou se a distância estava boa para a gravação. "Não importa, vou inventar tudo", disse. Surpreso com a minha piada, Mourinho fez uma careta. "Em espanhol", ele pediu. "Isso facilita o processo."
Ribot sinalizou para encerrarmos antes do prazo. Mourinho educadamente rejeitou. "Vamos continuar."

Pergunta - Você treina o Real Madrid do mesmo jeito que o Porto, a Inter e o Chelsea?
José Mourinho - Em termos gerais, sim. Sou o mesmo técnico aqui ou em qualquer parte. Desde que tenha um campo, uma bola e 11 jogadores, você pode trabalhar em qualquer lugar. Digo isso como brincadeira, vinda de alguém que ama o futebol. Mais seriamente, creio que ninguém deve esquecer os traços básicos do trabalho como treinador, especialmente os que afetam a liderança. É também necessário se adaptar à cultura, aos comportamentos de um indivíduo. Em resumo, a tudo aquilo que forma a identidade de um clube ou país.


Quais são os principais fatores que você leva em conta?
No Real Madrid, excluídos Iker [Casillas] e [Ricardo] Carvalho, todos são muito jovens. É o oposto da Inter, cujos atletas estão na casa dos 30. Preparar uma equipe para vencer na Itália ou na Inglaterra é diferente. Como já trabalhei em quatro países e treinei equipes vencedoras, tenho a vantagem da experiência, ainda que o Real nada tenha em comum com os outros times que treinei.


Como evoluiu desde o Porto?
Tudo o que você acumula na carreira é um tremendo enriquecimento. Após cada treino, faço uma análise detalhada e sempre tento melhorar. Minha filosofia, minhas ideias não mudaram desde que comecei, mas o conteúdo dos meus treinos evoluiu. Quando chego em casa após um jogo, reviso-o na minha cabeça, pensando no que fiz, nas instruções que dei, no que poderia corrigir. Quando venci a Copa dos Campeões com o Porto, era a primeira vez que eu enfrentava aquele desafio. Agora, tenho 75 partidas em torneios europeus. A soma dessas ações o torna mais forte.


Significa que, quando você estava no Porto, ainda não estava pronto para um clube como o Real Madrid ou a Inter?
Quanto a estar preparado, bem, eu talvez estivesse. A cada passo que dei precisava me preparar para o seguinte. Vencer a Copa dos Campeões com o Porto me propiciou o status para trabalhar na Inglaterra. Lá, adquiri mais experiências excelentes. Na Itália, deparei-me com um jogo mais tático e com rivais mais duros. Percorri esses caminhos para treinar o Real Madrid. Aqui, a pressão da mídia é terrível, mas meu conhecimento torna possível combatê-la. Se existe essa pressão sobre um técnico que venceu tudo, imagino como seria difícil para um técnico chegar ao Real em busca de seu primeiro título.

Com que tipo de futebol você se identifica mais?
Tornei-me quem sou graças aos times que treinei. Por mais que essas experiências tenham sido enriquecedoras, não posso dizer que preferi uma às demais. Mas jamais escondi que, do ponto de vista social e do trabalho, a chance na Inglaterra foi a que me deixou mais feliz. Meu habitat natural é o futebol inglês. É lá que pretendo encerrar a carreira, mas não poderia estar mais feliz no Real, pelo time, pelo amor que ele inspira e pela importância dos desafios que terei.


Para você, a principal qualidade de um técnico é a honestidade. Um técnico desonesto pode conquistar títulos?
Sim, mas não a cada ano.


Pode citar alguns exemplos?
Não, porque não sei como trabalham meus colegas. Qualquer pessoa consegue ganhar um título. Isso ocorre o tempo todo. Mas vencer e continuar vencendo... Nem todos são capazes. A honestidade de um técnico é essencial para garantir o sucesso dos atletas. É a primeira coisa que eles esperam do técnico.


Os atletas o amam. Mas algum não gostava de você?
Sim, sim.


E como você agiu?
Disse a ele que não o queria no meu time. É a primeira coisa que faço quando chego a um clube. Alguns técnicos preferem se esconder atrás do diretor, do presidente. Eu, não. Desde o começo, identifico esse jogador e digo a ele que vou tirá-lo do time. Isso nada tem a ver com falta de respeito. É exatamente o oposto! Frequentemente atletas não se enquadram nos meus planos. Digo isso a eles com franqueza, e o jogador deixa o clube. Ou não.


Você já mudou de ideia?
Sim. Na Inter, quando cheguei, disse a um jogador que o melhor para ele seria sair.


Quem era?
[Nicolas] Burdisso. Queria negociá-lo para investir em outros atletas. Mas ele, por fim, enquadrou-se melhor nos meus planos do que qualquer outro atleta que eu tenha treinado. Ele me disse: "Provarei que sou capaz de jogar". Respondi: "Hoje eu não o quero no time, mas amanhã pode ser outro dia". Agora ele sabe o quanto o amo e o quanto ficaria feliz de trabalhar com ele de novo.


Não aconteceu o mesmo com Marcelo, no Real Madrid?
Nunca quis que ele saísse, porque sentia que ele tinha ótimas qualidades para nosso ataque. Mas precisava de um meio-campista que me desse mais garantias na defesa. Após três meses, Marcelo virou um jogador completo, e fiquei feliz por não o termos substituído. Isso mostra que uma pessoa pode cometer erros e mudar de ideia sem deixar de ser honesta com ela mesma e com seus atletas.


Como convence um jogador a mudar, como fez com Marcelo ou com Eto'o, na Inter?
Quanto a Marcelo, eu queria fazer dele um jogador mais completo. Ele teve a sorte -ou azar- de não ir à Copa. Pôde começar a treinar mais cedo. Quando os jogadores voltaram, ele já estava treinando há duas ou três semanas. É um homem inteligente e de mente aberta, com imenso desejo de aprender.


E Eto'o?
Minha ideia era reforçar a Inter para mais um título da Série A e mais uma tentativa de vencer a Copa dos Campeões. Para o título italiano, pensei em um 4-4-2, com Eto'o e Milito no ataque. Para a Copa, não achava que esse sistema funcionaria e pensei em um 4-3-3. Disse a Eto'o: "Você vai precisar jogar nas laterais do campo, à direita ou à esquerda, e sempre o colocarei no setor do defensor que avança menos". Samuel se pôs à disposição do time e sacrificou seu papel de atacante. Tento fazer com que os atletas entendam: para mim, o time vem primeiro.



Você disse "para vencer a Série A" e "tentar o título da Copa dos Campeões". Por que tamanha franqueza?
Na Série A, eu sabia que tínhamos o melhor time, e é preciso que se diga: "Vou vencer". Não existe outra possibilidade. Na Copa dos Campeões, a Inter não era o time mais bem treinado, se comparada a Real Madrid, Barcelona, Bayern de Munique, Manchester United, Chelsea, times que poderiam ter vencido. No começo, você só pode dizer: "Bem, vamos tentar vencer". Aos poucos, passamos a dizer: "Vamos vencer". E vencemos.


Quando começou, imaginava que dez anos mais tarde seria considerado o melhor?
Não, não.


Não sonhava com isso?
Treinar é meu habitat natural e, quando voltei a Portugal, compreendia meu potencial e o potencial de outros. Sentia-me forte após ter trabalhado com [Bobby] Robson e [Louis] Van Gaal, no Barcelona. Voltando ao Porto, sabia que tudo aconteceria rapidamente. Quando decidi sair, esperava que meu caminho fosse mais difícil. Embora tenha conquistado o sucesso rapidamente e tenha orgulho disso, não estava certo de que isso aconteceria.


Já duvidou de você mesmo?
Não, jamais. Sempre digo a mim mesmo, aos meus amigos e às pessoas que trabalham comigo que você precisa melhorar a cada dia. É preciso se esforçar para melhorar. Isso não quer dizer que eu duvide de mim mesmo.


Mas dúvidas permitem que a pessoa cresça.
Discordo. Tenho uma profunda compreensão de minhas capacidades. Gosto de pensar como penso e gosto que as pessoas que me cercam pensem assim: que somos fortes, que somos os melhores, que ninguém pode nos vencer. As pessoas afirmam que é uma atitude arrogante, mas a considero respeitosa. Quando você diz que deseja ser forte, você não se esquece de que os outros também são fortes.


Quando você perde, isso o abala profundamente?
Na vitória ou na derrota, mergulho de imediato no próximo desafio. Isso me parece a melhor atitude para quem deseja ficar no futebol por muito tempo. Não quero vencer por cinco ou dez anos, me despedir e ficar em casa criticando os outros. Isso é o oposto de mim. Quero continuar por muito tempo porque gosto do trabalho. Ainda mais se estou por cima.


Tudo que você toca vira ouro. Há uma estratégia especial?
Trabalho.


Seus colegas dizem o mesmo. Trabalho apenas não basta.
Bem, trabalho de alta qualidade. As pessoas muitas vezes acham que é a quantidade de trabalho que faz a diferença. Eu discordo. Meus treinos nunca duram mais de 90 minutos. Mas cada sessão pode valer mais que 90 minutos se for levada a sério.


Conversa com os atletas?
Minhas reuniões nunca passam de dez minutos. Faço três delas por semana.


Poderia explicar melhor?
Uma reunião na noite anterior a um jogo, outra na manhã da partida e uma última à tarde. As três reuniões são o resultado do trabalho de sete pessoas durante a semana. Organizo e estruturo a estratégia. Depois, José de Morais, meu assistente encarregado do estudo audiovisual dos jogos, comanda cinco outros colaboradores, ilustradores e especialistas que usam Photoshop, Power Point etc. Eles produzem uma apresentação de 30 minutos, a que os jogadores assistem na preparação. Essa apresentação precisa de uma semana para ser criada. É por isso que digo que o mais importante é a qualidade da informação.


O que o deixa mais feliz?
Fico feliz quando venço. Mas o que me enche de felicidade é, por exemplo, saber que todos os atletas do Porto que encerraram suas carreiras ou que estão a ponto de fazê-lo guardaram o DVD da final contra o Monaco na Copa dos Campeões de 2004. Essas imagens servem como marco de suas realizações, e eles as assistem com amor.


Você distingue entre o sucesso de 2004 e o da Inter?
Felizmente, as duas Copas dos Campeões que venci foram inesperadas. O Porto era um time jovem, meninos que não tinham experiência internacional e não tinham vencido coisa alguma. Com eles, foi a imagem de chegar ao topo que nos orientou. No caso da Inter, foi o completo oposto: o time era veterano. Naquele caso, eu tinha jogadores que jamais conquistariam aquele título se não o fizessem naquela ocasião. (Bem, melhor não escrever isso a tinta, porque eles ainda podem vencer nesta temporada ou na próxima.)


Tornar seus jogadores felizes é a coisa mais importante?
Pude tirar a prova em agosto, durante a tradicional reunião de pré-temporada entre os técnicos da Uefa, que prestam uma pequena homenagem ao vencedor da Copa dos Campeões. Exibem fotos, vídeos. Quando mostraram as fotos da Inter recebendo a taça, sir Alex [Ferguson] disse: "Pare, vejam aquela foto". Mostrava todos os jogadores da Inter, boquiabertos e com lágrimas nos olhos. A foto diz tudo. Para mim, a alegria não só pessoal, mas especialmente a dos jogadores, é inestimável.


Você está feliz no Real?
Para mim, não existe diferença entre a vida em Milão, Madri ou Londres. Minha família não gosta de caminhar comigo. Prefere passear sem a minha companhia.



Tem algum jeito de relaxar? Não sou de muita festa. Gosto de estar com quem amo. Ver meu filho treinando, minha filha na natação.

Você não sai para uma boa refeição com os amigos? Não. Ocasionalmente recebo pessoas em casa. Hoje, dois dos meus assistentes vêm jantar. Vamos assistir ao jogo entre Portugal e Espanha [no dia 17 de novembro].

Mas isso é trabalho! Não. Mesmo que sete jogadores de meu time estejam em campo, é só uma chance de diversão com os colegas.

Você tem algum defeito? Como técnico tenho um defeito, e dos grandes. Vivo e trabalho num mundo em que não se pode dizer o que pensamos, a verdade. Não ser hipócrita, não ser diplomata, não bajular. É o meu defeito.

Como explica o fato de que seja tão controvertido? É inacreditável. Minha família e amigos me adoram.

Os jogadores também. Mas os jogadores estão entre os meus amigos.

E jornalistas. Não, não os jornalistas.

As pessoas que o chamam de "vilão" estão erradas? Decidi que não faria mais publicidade gratuita.

E se eu lhe dissesse que lhe falta modéstia? Graças a Deus!

Perdão? Sim, eu disse graças a Deus. Modéstia é uma qualidade que em nada ajuda.
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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