|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FUTEBOL
Esboço de utopia
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
No extraordinário "Entreatos", filme de João Moreira Salles que documenta os
bastidores da campanha eleitoral
vitoriosa de Lula, há duas cenas
que merecem ser mencionadas
neste espaço.
Numa delas, o então candidato
à presidência, sobrevoando Brasília num jatinho, diz a seu vice, José Alencar: "O Palácio da Alvorada é triste porque o Fernando
Henrique nunca jogou bola lá. A
gente pode pôr umas traves naquele gramadão, já pensou?".
Em outra passagem Lula lembra que, nos tempos de operário
na Villares, dispunha só de 15 minutos para comer no bandejão,
pois aproveitava o horário do almoço para jogar futebol com os
colegas, de bucho cheio, vestidos
de macacão sob o sol a pino.
Volta e meia os cronistas esportivos são acusados de saudosismo.
Outro dia mesmo um leitor me
perguntou: "Por que vocês vivem
tanto no passado?". A resposta,
que não sei qual é, teria de ser
complexa.
Por ora, limito-me a assumir
minha nostalgia. Quando ouvi
Lula evocar aquele insano e insalubre futebol operário, eu me vi de
volta à adolescência, quando ia
com meus colegas de escola jogar
peladas no célebre Areião -um
conjunto de campos de futebol localizado onde hoje está o Shopping Eldorado, na marginal Pinheiros com Eusébio Matoso.
Ali, só um campo era gramado
e estava sempre cercado, reservado para o time de várzea local. Os
outros eram livres, e era neles que
jogávamos, dividindo-os com os
operários da construção civil que
erguiam os prédios da então florescente avenida Faria Lima.
A hora em que havia mais peões
no Areião era justamente a hora
do almoço. Não eram poucos os
que jogavam de cuecas e descalços naquela areia fervente, enquanto suas roupas e capacetes
jaziam atrás de um gol.
A qualidade do espetáculo era
sofrível, mas o que valia era a alegria selvagem com que aqueles
operários -a maioria traindo no
sotaque a origem nordestina-
aproveitavam os poucos momentos de que dispunham para criar
um espaço de liberdade e prazer
numa cidade e numa existência
que, à parte isso, eram-lhes totalmente hostis.
Dizer que aqueles eram bons
tempos seria de uma leviandade
sem tamanho. Afinal, aqueles
peões comiam o pão que o diabo
amassou, o país vivia sob uma ditadura e o rio Pinheiros já cheirava quase tão mal quanto hoje.
Não, os tempos não eram nada
bons, pelo menos para a maioria.
Mas aqueles minutos de futebol
na areia, em que meninos de classe média trocavam passes e risadas com os trabalhadores mais
rudes, tentando uns e outros
construir uma linguagem comum
por meio da bola, eram talvez um
rascunho de utopia.
Da utopia de uma cidade sem
senhores e servos, sem elevadores
sociais e de serviço, sem cercas vigiadas entre áreas nobres e bairros populares.
Tudo isso me veio à mente, vejam só, assistindo a "Entreatos".
O filme entra em cartaz na próxima sexta-feira.
Outros alvos
O "Canal Brasil" exibe hoje, às
20h, com reprise amanhã, às
13h30, um programa especial,
com material do "Canal 100",
sobre a história do Flamengo.
Trata-se da repetição do programa feito por ocasião do centenário do clube, há nove anos.
De todo modo, é uma boa
oportunidade de ver jogadores
rubro-negros como Zico, Júlio
César, Nunes e Adílio chutando
a bola -e não a cara de torcedores caídos.
Ronaldo x Ronaldo
Sei que Atlético-PR e Santos lutam palmo a palmo pela ponta
do Nacional e que Flamengo e
Botafogo fazem o clássico dos
desesperados, mas o jogo do
fim de semana que espero com
mais ansiedade é Barcelona x
Real Madrid, hoje, às 19h. O título desta nota já diz tudo.
E-mail: jgcouto@uol.com.br
Texto Anterior: Motor - Fábio Seixas: Uma história sobre pés no chão Próximo Texto: Futebol: Parceria corintiana vira caso de polícia Índice
|