São Paulo, sábado, 20 de novembro de 2004

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FUTEBOL

Esboço de utopia

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

No extraordinário "Entreatos", filme de João Moreira Salles que documenta os bastidores da campanha eleitoral vitoriosa de Lula, há duas cenas que merecem ser mencionadas neste espaço.
Numa delas, o então candidato à presidência, sobrevoando Brasília num jatinho, diz a seu vice, José Alencar: "O Palácio da Alvorada é triste porque o Fernando Henrique nunca jogou bola lá. A gente pode pôr umas traves naquele gramadão, já pensou?".
Em outra passagem Lula lembra que, nos tempos de operário na Villares, dispunha só de 15 minutos para comer no bandejão, pois aproveitava o horário do almoço para jogar futebol com os colegas, de bucho cheio, vestidos de macacão sob o sol a pino.
Volta e meia os cronistas esportivos são acusados de saudosismo. Outro dia mesmo um leitor me perguntou: "Por que vocês vivem tanto no passado?". A resposta, que não sei qual é, teria de ser complexa.
Por ora, limito-me a assumir minha nostalgia. Quando ouvi Lula evocar aquele insano e insalubre futebol operário, eu me vi de volta à adolescência, quando ia com meus colegas de escola jogar peladas no célebre Areião -um conjunto de campos de futebol localizado onde hoje está o Shopping Eldorado, na marginal Pinheiros com Eusébio Matoso.
Ali, só um campo era gramado e estava sempre cercado, reservado para o time de várzea local. Os outros eram livres, e era neles que jogávamos, dividindo-os com os operários da construção civil que erguiam os prédios da então florescente avenida Faria Lima.
A hora em que havia mais peões no Areião era justamente a hora do almoço. Não eram poucos os que jogavam de cuecas e descalços naquela areia fervente, enquanto suas roupas e capacetes jaziam atrás de um gol.
A qualidade do espetáculo era sofrível, mas o que valia era a alegria selvagem com que aqueles operários -a maioria traindo no sotaque a origem nordestina- aproveitavam os poucos momentos de que dispunham para criar um espaço de liberdade e prazer numa cidade e numa existência que, à parte isso, eram-lhes totalmente hostis.
Dizer que aqueles eram bons tempos seria de uma leviandade sem tamanho. Afinal, aqueles peões comiam o pão que o diabo amassou, o país vivia sob uma ditadura e o rio Pinheiros já cheirava quase tão mal quanto hoje.
Não, os tempos não eram nada bons, pelo menos para a maioria. Mas aqueles minutos de futebol na areia, em que meninos de classe média trocavam passes e risadas com os trabalhadores mais rudes, tentando uns e outros construir uma linguagem comum por meio da bola, eram talvez um rascunho de utopia.
Da utopia de uma cidade sem senhores e servos, sem elevadores sociais e de serviço, sem cercas vigiadas entre áreas nobres e bairros populares.
Tudo isso me veio à mente, vejam só, assistindo a "Entreatos".
O filme entra em cartaz na próxima sexta-feira.

Outros alvos
O "Canal Brasil" exibe hoje, às 20h, com reprise amanhã, às 13h30, um programa especial, com material do "Canal 100", sobre a história do Flamengo. Trata-se da repetição do programa feito por ocasião do centenário do clube, há nove anos. De todo modo, é uma boa oportunidade de ver jogadores rubro-negros como Zico, Júlio César, Nunes e Adílio chutando a bola -e não a cara de torcedores caídos.

Ronaldo x Ronaldo
Sei que Atlético-PR e Santos lutam palmo a palmo pela ponta do Nacional e que Flamengo e Botafogo fazem o clássico dos desesperados, mas o jogo do fim de semana que espero com mais ansiedade é Barcelona x Real Madrid, hoje, às 19h. O título desta nota já diz tudo.

E-mail: jgcouto@uol.com.br


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