São Paulo, domingo, 22 de novembro de 1998

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O "pirata' do basquete

Cego do olho direito há dez anos, quando recebeu uma "dedada' durante um jogo, Juliano Landim, 27, da Hebraica, é o pivô-cestinha e um dos dez melhores reboteiros do Paulista-98; na única vez em que ficou desempregado, jogador foi ensacador em uma carvoaria

LUÍS CURRO
da Reportagem Local

"Foi um cara chamado Chicão, que tinha o cabelo meio enroladinho. Nunca mais ouvi falar dele."
Juliano Cavallini Landim, 27, 2,00 m e 100 kg, guardou na memória o apelido do jogador, que, dez anos atrás, foi o responsável pela perda da visão de um de seus olhos, com uma "dedada".
Pela Hebraica, Juliano, mesmo cego do olho direito, é um dos cestinhas deste Campeonato Paulista -o único pivô entre os dez melhores pontuadores da competição.
Na fase classificatória, acumulou 452 pontos em 22 jogos. Só perdeu para Edvar Júnior e Alfredo Perandini, do Palmeiras (559 e 477, respectivamente), e Ernest Patterson, do Tilibra-Copimax/Bauru (526).
Em média, Juliano anota 20,6 pontos por partida -a oitava marca do torneio. No topo da lista está Oscar Schmidt, do Mackenzie-Microcamp/Barueri, com 33 pontos (11 jogos disputados).
Com média de 6,8 rebotes por jogo, Juliano também está entre os dez melhores neste fundamento.
O atleta não se lembra de ter sentido, no momento do lance com Chicão, que aconteceu após uma disputa de rebote em uma partida entre o Franca e o Corinthians, dor maior em sua vida. "Doía tanto que não conseguia abrir nem o outro olho", recorda-se ele.
A dor diminuiu pouco depois, mas Juliano percebeu que não estava mais enxergando bem com o olho direito. Diz ter consultado alguns médicos da região de Franca, onde jogava, mas nenhum apontara diagnóstico conclusivo.
Quando finalmente um oftalmologista apontou o problema -deslocamento de retina-, a perda da visão já havia se acentuado demais: mesmo com uma cirurgia, apenas 10% da capacidade visual do olho poderia ser salva.
"Não tinha mais o que fazer, então resolvi operar o olho bom. Como havia uma tendência a isso ocorrer no outro olho, injetaram um líquido para prevenir o problema", afirmou Juliano.
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Óculos de motoqueiro Natural de Osvaldo Cruz (565 km a noroeste de São Paulo) e com família residente em Lucélia (a 10 km de sua cidade natal), onde começou a jogar basquete na escola, Juliano, mesmo "caolho", não desistiu da modalidade.
"Fui acostumando, acostumando e quando me dei conta já estava adaptado à cegueira", conta.
Ainda em Franca, onde jogou de 87 a 90, foi incentivado pelo técnico Hélio Rubens Garcia a utilizar óculos protetores, importados dos Estados Unidos pela equipe.
"Eram aqueles óculos de motoqueiro, aquelas coisas feias que o Kareem Abdul-Jabbar e o James Worthy (ex-astros do Los Angeles Lakers, da NBA, a liga profissional norte-americana) usavam. Eu parecia um besouro", diz Juliano.
Mas a aparência não era o que mais o incomodava. Apesar de os óculos darem mais proteção, prejudicavam o desempenho.
"Sabe quando o vidro do carro embaça, e você não vê nada? Era assim. Embaçava demais, e eu enxergava menos ainda. Terrível. Usei uns quatro meses e parei."
Depois disso, optou por não usar mais nenhum apetrecho. Diz acreditar que seus reflexos, que afirma estarem mais aguçados, são suficientes para impedir outra dedada.
"Estou muito mais esperto. Meu olho esquerdo fica 24 horas por dia atento", diz Juliano, que depois de Franca passou por Itália, Santa Cruz do Sul (RS), Argentina, Limeira, Araraquara, Araras e Joinville (SC), antes de ser contratado pela Hebraica.
Foi em Franca e Santa Cruz do Sul que, mesmo com o "olho bom" atento, o atleta passou por momentos de constrangimento.
Próximo à lateral das quadras, "atropelou", por não os ver, os treinadores Hélio Rubens, técnico da seleção brasileira e ainda da equipe francana, e Ary Vidal, ex-seleção, ao se virar para dar continuidade a exercícios de corrida.
"Naquela época, o Hélio Rubens ficou mancando durante uma semana. Pegou firme."
Com Ary Vidal, a topada foi pior: "Trombei e fui embora. Quando parei e olhei, ele estava agachado, quase deitado, no meio da quadra. Pensei: nossa, o que eu fui fazer? Matei o homem!"
"Você pede dez mil desculpas, mas ainda assim fica constrangido", completa, bem-humorado, sobre os incidentes.
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Pescoço duro Após perder a vista do olho direito, uma outra parte do corpo passou a ter vital importância para Juliano: o pescoço.
Nos treinamentos e nos jogos, o pivô diz compensar a falta de visão periférica com rápidos e constantes movimentos do pescoço.
"Meu pescoço é até meio duro por causa disso. Tenho sempre que estar alongando, quase o dia inteiro", afirma ele.
O pivô diz que o alongamento, no entanto, não é suficiente. "Como faço muitos movimentos, tenho muitas dores no pescoço e também de cabeça."
Mas nada de aspirina ou pomadas para aliviar o sofrimento.
Segundo ele, "não há nada que uma massagem não resolva".
E, para isso, não tem que despender dinheiro com os serviços de um massagista profissional, pois achou uma solução "caseira".
"Minha noiva, com quem estou há três anos, é fisioterapeuta. Ela mesmo trata e cuida. Se não fosse a Márcia, meu pescoço estaria congelado, e eu não me mexeria", declara o atleta. "Quero me casar com ela no ano que vem."
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Pirata de brinco Juliano faz questão de destacar o respeito dos companheiros em relação a sua deficiência. "Há brincadeiras, mas sem maldade."
Uma das mais comuns é um colega chegar pelo lado direito, enquanto a atenção dele está voltada para o lado esquerdo, e começar a fazer gestos ou caretas perto do olho cego, sem que ele perceba.
Sobre apelidos que lhe deram por causa da cegueira, Juliano diz só se lembrar de um: "pirata", dado pelo técnico Ary Vidal e outros companheiros quando jogava em Santa Cruz do Sul.
"De ceguinho não me chamam não, mas de pirata sim. Falam até que já tenho fantasia para o Carnaval, que só falta o tapa-olho e um papagaio no ombro", diz.
"Podia até mudar meu nome no basquete para Pirata e jogar de tapa-olho, pois não ia mudar nada. Daria um marketing", acrescenta, em tom de brincadeira.
Para o observador comum, em um primeiro momento, não é fácil perceber que o jogador é cego de um olho. Chama mais a atenção pela cabeça raspada e pelo pequeno, porém reluzente, brinco que usa na orelha esquerda -o que até contribuiria no aspecto de pirata.
"Coloquei quando jogava na Argentina. Um americano que morava comigo tinha um muito bonito, e fiquei apaixonado."
Ele afirma que é até mais comum ser pichado pelo brinco ("falam: nossa, que feio, mulherzinha") do que pelo olho.
Uma análise mais atenta do rosto de Juliano, mais especificamente do olho direito, revela que há algo diferente: é opaco, e sua pupila, menor do que a do olho esquerdo.
Preconceito nas quadras Juliano diz nunca ter enfrentado: "Sempre tive clubes para jogar".
Ou quase sempre.
Dois anos atrás, ficou sem clube para um Brasileiro e durante alguns meses trabalhou como ensacador na carvoaria de seu pai em Lucélia. Sem salário, foi a saída para se sustentar.
Voltou a jogar no time de Araras que disputou a segunda divisão do Paulista no ano passado. Foi um dos destaques do campeonato e despertou o interesse do treinador da Hebraica, Eduardo Zanolli, 47.
"Além do Juliano, nunca encontrei alguém com um problema físico desse tipo", comenta o técnico. "Só uma vez, acho que em 1965, veio um time dos EUA fazer uma apresentação no Ibirapuera. Um dos jogadores não tinha a metade de um braço. Pegava a bola e arremessava com uma mão só. Era a atração, o show da turnê."
"Hoje, sou único. Não há outro com problema de olho, fala, mão ou ouvido", arrisca o atleta.
Zanolli prefere elogiar o nível técnico de Juliano. "Ele é completo na posição, pois domina todos os fundamentos. É bom nos arremessos de média distância e muito bom nos lances livres, acima da média dos outros pivôs. Na defesa, marca bem e é bom reboteiro."
Os companheiros citam, além das qualidades técnicas, sua força de vontade.
"O Juliano é um cara batalhador pra caramba, merece estar onde está. Às vezes, o esporte é ingrato, e fico feliz, porque ele conseguiu superar a dificuldade (de jogar mesmo cego de um olho)", diz o armador Paulinho Teixeira, 25.
"Além disso, não é fácil se sobressair em um time pequeno, limitado, onde ele sempre jogou. Conseguiu superar dificuldades pessoais e também nos clubes", acrescenta.
O técnico Zanolli reforça ainda o espírito de equipe de seu principal pivô, "há cinco partidas jogando com o dedão do pé fraturado".
E mais: a disciplina e a atenção nas orientações técnicas: "Jogador "surdo' está cheio", diz Zanolli, que não chegou a ser "atropelado".
Contra o Mackenzie-Microcamp/Barueri, hoje, na primeira rodada da fase de quartas-de-final do Paulista, o técnico diz esperar que a marcação sobre Juliano não seja tão forte, como tem acontecido nas últimas partidas. "Ele está sendo sempre cercado por dois."
"É muito choque e pancada para não me deixar pegar na bola. E, com dois pivôs em cima, às vezes não consigo ir para a cesta. É duro jogar assim", admite o pivô.
Como a Hebraica dificilmente se classificará para o Nacional de 1999 (leia texto ao lado), Juliano afirma esperar que sua atuação no Paulista possa originar convites de outras equipes ("ainda não tive nenhum") e evitar ficar desempregado pela segunda vez na vida.
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Direção perigosa?
Fora das quadras, Juliano diz que a "falta de um olho" não o atrapalha em nada. O pivô tem carteira de motorista e diz que dirige frequentemente.
Mas revela que precisa consultar novamente um oftalmologista, pois o "olho bom" tem sofre de astigmatismo. "Talvez passe a jogar com lentes (de contato). Estou com preguiça de usar e de querer me adaptar. Mas em janeiro farei uma consulta", afirma ele.
E, em relação a Chicão, o "algoz", ficou alguma mágoa ou raiva?
Juliano diz que nenhuma.
"A dedada foi um lance ocasional. Nem se ele quisesse, se mirasse, acertaria com tanta perfeição."




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