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O "pirata' do
basquete
Cego do olho direito há dez anos, quando recebeu uma "dedada' durante um jogo, Juliano Landim, 27, da Hebraica, é o
pivô-cestinha e um dos dez melhores reboteiros do Paulista-98; na única
vez em que ficou desempregado,
jogador foi ensacador em
uma carvoaria
LUÍS CURRO
da Reportagem Local
"Foi um cara chamado Chicão,
que tinha o cabelo meio enroladinho. Nunca mais ouvi falar dele."
Juliano Cavallini Landim, 27,
2,00 m e 100 kg, guardou na memória o apelido do jogador, que, dez
anos atrás, foi o responsável pela
perda da visão de um de seus
olhos, com uma "dedada".
Pela Hebraica, Juliano, mesmo
cego do olho direito, é um dos cestinhas deste Campeonato Paulista
-o único pivô entre os dez melhores pontuadores da competição.
Na fase classificatória, acumulou
452 pontos em 22 jogos. Só perdeu
para Edvar Júnior e Alfredo Perandini, do Palmeiras (559 e 477, respectivamente), e Ernest Patterson,
do Tilibra-Copimax/Bauru (526).
Em média, Juliano anota 20,6
pontos por partida -a oitava marca do torneio. No topo da lista está
Oscar Schmidt, do Mackenzie-Microcamp/Barueri, com 33 pontos
(11 jogos disputados).
Com média de 6,8 rebotes por jogo, Juliano também está entre os
dez melhores neste fundamento.
O atleta não se lembra de ter sentido, no momento do lance com
Chicão, que aconteceu após uma
disputa de rebote em uma partida
entre o Franca e o Corinthians, dor
maior em sua vida. "Doía tanto
que não conseguia abrir nem o outro olho", recorda-se ele.
A dor diminuiu pouco depois,
mas Juliano percebeu que não estava mais enxergando bem com o
olho direito. Diz ter consultado alguns médicos da região de Franca,
onde jogava, mas nenhum apontara diagnóstico conclusivo.
Quando finalmente um oftalmologista apontou o problema -deslocamento de retina-, a perda da
visão já havia se acentuado demais:
mesmo com uma cirurgia, apenas
10% da capacidade visual do olho
poderia ser salva.
"Não tinha mais o que fazer, então resolvi operar o olho bom. Como havia uma tendência a isso
ocorrer no outro olho, injetaram
um líquido para prevenir o problema", afirmou Juliano.
²
Óculos de motoqueiro
Natural de Osvaldo Cruz (565 km
a noroeste de São Paulo) e com família residente em Lucélia (a 10 km
de sua cidade natal), onde começou a jogar basquete na escola, Juliano, mesmo "caolho", não desistiu da modalidade.
"Fui acostumando, acostumando e quando me dei conta já estava
adaptado à cegueira", conta.
Ainda em Franca, onde jogou de
87 a 90, foi incentivado pelo técnico Hélio Rubens Garcia a utilizar
óculos protetores, importados dos
Estados Unidos pela equipe.
"Eram aqueles óculos de motoqueiro, aquelas coisas feias que o
Kareem Abdul-Jabbar e o James
Worthy (ex-astros do Los Angeles
Lakers, da NBA, a liga profissional
norte-americana) usavam. Eu parecia um besouro", diz Juliano.
Mas a aparência não era o que
mais o incomodava. Apesar de os
óculos darem mais proteção, prejudicavam o desempenho.
"Sabe quando o vidro do carro
embaça, e você não vê nada? Era
assim. Embaçava demais, e eu enxergava menos ainda. Terrível.
Usei uns quatro meses e parei."
Depois disso, optou por não usar
mais nenhum apetrecho. Diz acreditar que seus reflexos, que afirma
estarem mais aguçados, são suficientes para impedir outra dedada.
"Estou muito mais esperto. Meu
olho esquerdo fica 24 horas por dia
atento", diz Juliano, que depois de
Franca passou por Itália, Santa
Cruz do Sul (RS), Argentina, Limeira, Araraquara, Araras e Joinville (SC), antes de ser contratado
pela Hebraica.
Foi em Franca e Santa Cruz do
Sul que, mesmo com o "olho bom"
atento, o atleta passou por momentos de constrangimento.
Próximo à lateral das quadras,
"atropelou", por não os ver, os
treinadores Hélio Rubens, técnico
da seleção brasileira e ainda da
equipe francana, e Ary Vidal, ex-seleção, ao se virar para dar continuidade a exercícios de corrida.
"Naquela época, o Hélio Rubens
ficou mancando durante uma semana. Pegou firme."
Com Ary Vidal, a topada foi pior:
"Trombei e fui embora. Quando
parei e olhei, ele estava agachado,
quase deitado, no meio da quadra.
Pensei: nossa, o que eu fui fazer?
Matei o homem!"
"Você pede dez mil desculpas,
mas ainda assim fica constrangido", completa, bem-humorado,
sobre os incidentes.
²
Pescoço duro
Após perder a vista do olho direito, uma outra parte do corpo passou a ter vital importância para Juliano: o pescoço.
Nos treinamentos e nos jogos, o
pivô diz compensar a falta de visão
periférica com rápidos e constantes movimentos do pescoço.
"Meu pescoço é até meio duro
por causa disso. Tenho sempre que
estar alongando, quase o dia inteiro", afirma ele.
O pivô diz que o alongamento,
no entanto, não é suficiente. "Como faço muitos movimentos, tenho muitas dores no pescoço e
também de cabeça."
Mas nada de aspirina ou pomadas para aliviar o sofrimento.
Segundo ele, "não há nada que
uma massagem não resolva".
E, para isso, não tem que despender dinheiro com os serviços de
um massagista profissional, pois
achou uma solução "caseira".
"Minha noiva, com quem estou
há três anos, é fisioterapeuta. Ela
mesmo trata e cuida. Se não fosse a
Márcia, meu pescoço estaria congelado, e eu não me mexeria", declara o atleta. "Quero me casar
com ela no ano que vem."
²
Pirata de brinco
Juliano faz questão de destacar o
respeito dos companheiros em relação a sua deficiência. "Há brincadeiras, mas sem maldade."
Uma das mais comuns é um colega chegar pelo lado direito, enquanto a atenção dele está voltada
para o lado esquerdo, e começar a
fazer gestos ou caretas perto do
olho cego, sem que ele perceba.
Sobre apelidos que lhe deram
por causa da cegueira, Juliano diz
só se lembrar de um: "pirata", dado pelo técnico Ary Vidal e outros
companheiros quando jogava em
Santa Cruz do Sul.
"De ceguinho não me chamam
não, mas de pirata sim. Falam até
que já tenho fantasia para o Carnaval, que só falta o tapa-olho e um
papagaio no ombro", diz.
"Podia até mudar meu nome no
basquete para Pirata e jogar de tapa-olho, pois não ia mudar nada.
Daria um marketing", acrescenta,
em tom de brincadeira.
Para o observador comum, em
um primeiro momento, não é fácil
perceber que o jogador é cego de
um olho. Chama mais a atenção
pela cabeça raspada e pelo pequeno, porém reluzente, brinco que
usa na orelha esquerda -o que até
contribuiria no aspecto de pirata.
"Coloquei quando jogava na Argentina. Um americano que morava comigo tinha um muito bonito,
e fiquei apaixonado."
Ele afirma que é até mais comum
ser pichado pelo brinco ("falam:
nossa, que feio, mulherzinha") do
que pelo olho.
Uma análise mais atenta do rosto
de Juliano, mais especificamente
do olho direito, revela que há algo
diferente: é opaco, e sua pupila,
menor do que a do olho esquerdo.
Preconceito nas quadras Juliano
diz nunca ter enfrentado: "Sempre
tive clubes para jogar".
Ou quase sempre.
Dois anos atrás, ficou sem clube
para um Brasileiro e durante alguns meses trabalhou como ensacador na carvoaria de seu pai em
Lucélia. Sem salário, foi a saída para se sustentar.
Voltou a jogar no time de Araras
que disputou a segunda divisão do
Paulista no ano passado. Foi um
dos destaques do campeonato e
despertou o interesse do treinador
da Hebraica, Eduardo Zanolli, 47.
"Além do Juliano, nunca encontrei alguém com um problema físico desse tipo", comenta o técnico.
"Só uma vez, acho que em 1965,
veio um time dos EUA fazer uma
apresentação no Ibirapuera. Um
dos jogadores não tinha a metade
de um braço. Pegava a bola e arremessava com uma mão só. Era a
atração, o show da turnê."
"Hoje, sou único. Não há outro
com problema de olho, fala, mão
ou ouvido", arrisca o atleta.
Zanolli prefere elogiar o nível
técnico de Juliano. "Ele é completo
na posição, pois domina todos os
fundamentos. É bom nos arremessos de média distância e muito
bom nos lances livres, acima da
média dos outros pivôs. Na defesa,
marca bem e é bom reboteiro."
Os companheiros citam, além
das qualidades técnicas, sua força
de vontade.
"O Juliano é um cara batalhador
pra caramba, merece estar onde
está. Às vezes, o esporte é ingrato, e
fico feliz, porque ele conseguiu superar a dificuldade (de jogar mesmo cego de um olho)", diz o armador Paulinho Teixeira, 25.
"Além disso, não é fácil se sobressair em um time pequeno, limitado, onde ele sempre jogou.
Conseguiu superar dificuldades
pessoais e também nos clubes",
acrescenta.
O técnico Zanolli reforça ainda o
espírito de equipe de seu principal
pivô, "há cinco partidas jogando
com o dedão do pé fraturado".
E mais: a disciplina e a atenção
nas orientações técnicas: "Jogador
"surdo' está cheio", diz Zanolli, que
não chegou a ser "atropelado".
Contra o Mackenzie-Microcamp/Barueri, hoje, na primeira
rodada da fase de quartas-de-final
do Paulista, o técnico diz esperar
que a marcação sobre Juliano não
seja tão forte, como tem acontecido nas últimas partidas. "Ele está
sendo sempre cercado por dois."
"É muito choque e pancada para
não me deixar pegar na bola. E,
com dois pivôs em cima, às vezes
não consigo ir para a cesta. É duro
jogar assim", admite o pivô.
Como a Hebraica dificilmente se
classificará para o Nacional de
1999 (leia texto ao lado), Juliano
afirma esperar que sua atuação no
Paulista possa originar convites de
outras equipes ("ainda não tive nenhum") e evitar ficar desempregado pela segunda vez na vida.
²
Direção perigosa?
Fora das quadras, Juliano diz
que a "falta de um olho" não o atrapalha em nada. O pivô tem carteira
de motorista e diz que dirige frequentemente.
Mas revela que precisa consultar
novamente um oftalmologista,
pois o "olho bom" tem sofre de astigmatismo. "Talvez passe a jogar
com lentes (de contato). Estou
com preguiça de usar e de querer
me adaptar. Mas em janeiro farei
uma consulta", afirma ele.
E, em relação a Chicão, o "algoz",
ficou alguma mágoa ou raiva?
Juliano diz que nenhuma.
"A dedada foi um lance ocasional. Nem se ele quisesse, se mirasse, acertaria com tanta perfeição."
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