São Paulo, quinta-feira, 27 de junho de 2002

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TONI NEGRI

O futebol se antecipa à globalização

O mundo tornou-se um só. Não há mais forasteiros, estranhos ou coisas externas neste mundo. A globalização das relações econômicas anda no mesmo passo que a globalização das relações sociais. Hoje, o mundo se restringe às ligações financeiras que vão de indivíduo para indivíduo, saltando as fronteiras nacionais.
Os contratos não vêm mais com a chancela do Estado, mas com carimbos de advogados que constituem elos da "lex mercatoria".
Agora, não se vira mais cidadão do mundo: você já nasce sendo um. As platéias de espectadores e torcedores estão globalizadas. Eu, um italiano, não torci pela Itália nesta Copa, virei um seguidor apaixonado do Senegal.
Por um lado, o Mundial de futebol é, nessa perspectiva, um anacronismo singular. Nele, as nações guerreiam ainda, uma contra a outra. Certo, é um jogo, é uma experiência lúdica que não comporta declarações de guerra: batem de frente países, e não diferentes imperialismos.
Na verdade, tudo isso é uma ficção. Não existem mais nações, com as relações sociais, econômicas e financeiras se desenvolvendo em escala universal, onde as identidades se esvanecem e valem muito pouco no meio de tanto intercâmbio. A Copa se apresenta como uma ficcional permanência das nações, e o nosso orgulho nacional é artificialmente reavivado.
Neste planeta sem confins não vale a pena se divertir com essas nações-fetiches. O fato é que o futebol não havia previsto a realidade da globalização. Mas a antecipou. É por isso que o futebol é uma chave para interpretar o "espírito do mundo". O futebol já havia começado a circulação de mão-de-obra (ou pé-de-obra) de um país a outro, já tornava híbridos os torneios locais e contaminava as torcidas futebolísticas.
Na Europa, as grandes nações européias são todas híbridas: a seleção italiana bicampeã nos anos 30 estava cheia de argentinos, os franceses vencedores de 1998 eram quase todos estrangeiros. Isso demonstra como o futebol se antecipa à realidade.
A força de trabalho futebolística se move com toda a liberdade e chegou a todos os rincões primeiro que a globalização. Hoje, observando os torneios locais, se percebe como está avançado esse processo.
Foi divertido (digo ironicamente, afinal, tratou-se na verdade de uma afirmação indecente) ouvir recentemente um nacionalista francês exclamar, diante da multicolorida seleção de seu país, que para conquistar a vitória era preciso uma equipe só de brancos... Pobre idiota!
A mistura é irreversível. É uma exigência do mundo. E, além disso, essa lógica não diz respeito só a equipes de futebol. Ela serve como condição para nossa existência, para nós, seres cosmopolitas...
E, depois, existe um efeito profundamente positivo. Essa lógica acaba com a possibilidade de usar uma herança de cor ou de raça como arma para a exploração ou a exclusão. O campeonato mundial de futebol é útil por isso. Não porque exalta as nações, mas porque mistura as raças, as cores, as paixões. Em suma, mostra as condições elementares da liberdade.


Toni Negri, 69, filósofo italiano, é autor de "Império", entre outros


Tradução de Rodrigo Bertolotto



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