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Sono redondo
CÍNTIA MOSCOVICH
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nunca entendi um ovo de futebol.
Nada.
Nadica.
De futebol, tudo o que sei são
lembranças de infância, quando meu pai e meus irmãos se
sentavam diante da televisão
para dizer palavrões e dar pulos
nervosos no sofá. Em épocas de
Copa do Mundo, a mãe cozinhava pinhões, estourava pipocas, passava café novo. O pai fechava as cortinas para a imagem ficar melhor. Com a ala
masculina da família, eu exercitava minha curiosidade -e minha preguiça. Nunca entendi
como eles se fascinavam tanto
com aqueles 22 dois jogadores
briguentos, todos melecados de
suor. Era a bola rolar no gramado e eu começava aos bocejos,
me batendo contra o sono
-mas, depois do Hino Nacional, dos pinhões e das pipocas,
adormecia e só acordava quando tudo tinha acabado. Futebol,
para mim, era sinônimo de barriga cheia e soneca.
E tinha seu Antero. Que era
porteiro de nosso prédio. Baixinho, com um eterno boné de lã
enterrado até as orelhas. Passava os dias sentado diante de
uma mesa, bem na entrada do
edifício, em companhia de um
radinho de pilha. Um sujeito
pacato e bom: perguntava se
podia ajudar com as compras,
comentava sobre o tempo, avisava que iam limpar a caixa d'água. E era maluco por futebol.
Naquele belo dia, a cidade estava um tumulto só. Todos só
falavam na final contra a Itália,
que poderia dar ao Brasil o tricampeonato -isso ao menos eu
podia entender. Voltando da
escola, o pai me puxando depressa pela de mão, vimos que
seu Antero olhava com respeito
e ansiedade para o radinho. Papai perguntou se o jogo já tinha
começado. Seu Antero fez um
gesto lento com a cabeça.
"Ainda não. Mas vai ser uma
luta renhida."
Papai desprezou o elevador e,
comigo nos braços, subiu de
dois em dois as escadas até nosso apartamento.
Os meninos já haviam ligado
a televisão e mamãe estourava
pipocas. Papai jogou a gravata
em cima de uma cadeira e sentou no sofá ao lado do meu irmão caçula. Pediu que, pelo
menos daquela vez, eu não dormisse, a partida era histórica.
Falei que ia tentar. Prometer,
eu não prometia.
O hino do Brasil terminou no
momento em que a mãe trazia
os pinhões e o café. A luta era
tão renhida que todo mundo se
esqueceu da comida. Menos eu,
claro, que dei cabo de tudo
quanto podia. Tentei e tentei
me manter acordada -juro que
tentei. Mas logo o jogo histórico era nada mais que um borrão
distante, que me abraçava de
conforto e placidez.
Acordei com um foguetório
danado. Os meninos davam pulos e pulos, e eu sentia meu corpo alçado no ar, também pulando e pulando. Quando me dei
conta do que tinha acontecido,
vi que estava nos braços de papai, que me tapava de beijos e
me jogava para cima e me dizia
que nós tínhamos goleado a
Itália, que a Copa do Mundo, de
novo, era nossa. Seu Antero,
não sei como, estava na nossa
sala e, depois de fazer voar o boné de lã pela janela, prendeu na
veneziana uma imensa bandeira do Brasil. Sem conter a emoção, me tirou dos braços de papai e me encheu de beijos. Foi
bonita, a festa.
Continuo sem entender nada
de futebol. Nada. Nadica. Mas,
quando o Brasil joga, a televisão
aqui de casa sempre está ligada,
mesmo antes do Hino Nacional. Faço pinhão e pipoca.
Também estendo na janela
uma enorme bandeira do Brasil. Em homenagem a papai e a
seu Antero, que travaram lutas
renhidas para seguir vivendo
mas que não puderam ver o
Brasil mais duas vezes campeão do mundo, pulo, xingo, digo palavrões -mesmo que meu
marido diga que eu faço tudo isso na hora errada. Nem me importo, vejo o jogo de cabo a rabo.
O melhor de tudo: nunca
mais adormeci.
Cíntia Moscovich é jornalista e escritora. Autora, entre outros, de "Arquitetura do Arco-Íris"
(ed. Record). Em setembro, lança "Por Que Sou
Gorda, Mamãe?" (ed. Record).
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