São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sono redondo

CÍNTIA MOSCOVICH
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nunca entendi um ovo de futebol.
Nada.
Nadica.
De futebol, tudo o que sei são lembranças de infância, quando meu pai e meus irmãos se sentavam diante da televisão para dizer palavrões e dar pulos nervosos no sofá. Em épocas de Copa do Mundo, a mãe cozinhava pinhões, estourava pipocas, passava café novo. O pai fechava as cortinas para a imagem ficar melhor. Com a ala masculina da família, eu exercitava minha curiosidade -e minha preguiça. Nunca entendi como eles se fascinavam tanto com aqueles 22 dois jogadores briguentos, todos melecados de suor. Era a bola rolar no gramado e eu começava aos bocejos, me batendo contra o sono -mas, depois do Hino Nacional, dos pinhões e das pipocas, adormecia e só acordava quando tudo tinha acabado. Futebol, para mim, era sinônimo de barriga cheia e soneca.
E tinha seu Antero. Que era porteiro de nosso prédio. Baixinho, com um eterno boné de lã enterrado até as orelhas. Passava os dias sentado diante de uma mesa, bem na entrada do edifício, em companhia de um radinho de pilha. Um sujeito pacato e bom: perguntava se podia ajudar com as compras, comentava sobre o tempo, avisava que iam limpar a caixa d'água. E era maluco por futebol.
Naquele belo dia, a cidade estava um tumulto só. Todos só falavam na final contra a Itália, que poderia dar ao Brasil o tricampeonato -isso ao menos eu podia entender. Voltando da escola, o pai me puxando depressa pela de mão, vimos que seu Antero olhava com respeito e ansiedade para o radinho. Papai perguntou se o jogo já tinha começado. Seu Antero fez um gesto lento com a cabeça.
"Ainda não. Mas vai ser uma luta renhida."
Papai desprezou o elevador e, comigo nos braços, subiu de dois em dois as escadas até nosso apartamento.
Os meninos já haviam ligado a televisão e mamãe estourava pipocas. Papai jogou a gravata em cima de uma cadeira e sentou no sofá ao lado do meu irmão caçula. Pediu que, pelo menos daquela vez, eu não dormisse, a partida era histórica. Falei que ia tentar. Prometer, eu não prometia.
O hino do Brasil terminou no momento em que a mãe trazia os pinhões e o café. A luta era tão renhida que todo mundo se esqueceu da comida. Menos eu, claro, que dei cabo de tudo quanto podia. Tentei e tentei me manter acordada -juro que tentei. Mas logo o jogo histórico era nada mais que um borrão distante, que me abraçava de conforto e placidez.
Acordei com um foguetório danado. Os meninos davam pulos e pulos, e eu sentia meu corpo alçado no ar, também pulando e pulando. Quando me dei conta do que tinha acontecido, vi que estava nos braços de papai, que me tapava de beijos e me jogava para cima e me dizia que nós tínhamos goleado a Itália, que a Copa do Mundo, de novo, era nossa. Seu Antero, não sei como, estava na nossa sala e, depois de fazer voar o boné de lã pela janela, prendeu na veneziana uma imensa bandeira do Brasil. Sem conter a emoção, me tirou dos braços de papai e me encheu de beijos. Foi bonita, a festa.
Continuo sem entender nada de futebol. Nada. Nadica. Mas, quando o Brasil joga, a televisão aqui de casa sempre está ligada, mesmo antes do Hino Nacional. Faço pinhão e pipoca. Também estendo na janela uma enorme bandeira do Brasil. Em homenagem a papai e a seu Antero, que travaram lutas renhidas para seguir vivendo mas que não puderam ver o Brasil mais duas vezes campeão do mundo, pulo, xingo, digo palavrões -mesmo que meu marido diga que eu faço tudo isso na hora errada. Nem me importo, vejo o jogo de cabo a rabo.
O melhor de tudo: nunca mais adormeci.


Cíntia Moscovich é jornalista e escritora. Autora, entre outros, de "Arquitetura do Arco-Íris" (ed. Record). Em setembro, lança "Por Que Sou Gorda, Mamãe?" (ed. Record).


Texto Anterior: Joca Reiners Terron: O fim da infância
Próximo Texto: Jorge Caldeira: Torcida ao pé do ouvido
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.