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Torcida ao pé do ouvido
JORGE CALDEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
As arquibancadas do Canindé são, cada vez mais, parte de
um universo paralelo, algo baço
e irreal que sobrevive numa dobra do tempo, num ponto do espaço que todos sabem onde fica
mas ninguém consegue chegar.
Falo delas por experiência, garanto que existem; e no entanto
tenho a impressão de estar sendo lido como se tudo fosse a
mais pura ficção. Mas não. São
fatos, e vamos a eles: estive lá na
última terça, dia de frio e chuva.
Tenho poucas testemunhas,
é verdade: meu filho Júlio e seu
amigo são-paulino, o Banzo.
As arquibancadas do Canindé, creiam, são freqüentadas.
Alguma coisa em torno de 200
pessoas nessa noite. Todos de
pé, para evitar o cimento molhado. E, para evitar o pior, a solidão, a trupe se junta atrás do
gol onde a Portuguesa ataca.
Aqui se entra em outra dobra.
Ao contrário das arquibancadas normais, onde a presença
se alonga no tempo (é preciso
chegar cedo para conseguir um
bom lugar) e se comprime no
espaço das pessoas grudadas,
ver um jogo da Lusa é uma experiência peripatética: andar
de um lado para o outro durante o jogo faz parte do programa.
Outra característica própria
das arquibancadas do Canindé
é a relação sentimental que liga
os torcedores ao time. Com o
perdão da expressão de inveja,
qualquer imbecil pode torcer
para um time grande, apagar o
duro das derrotas e manter
suas esperanças de vitórias futuras à custa das lembranças de
bons resultados. Mas é preciso
um laço de outra espécie para
estar na arquibancada de um time que mais perde que ganha,
onde as horas amargas são inevitáveis. Faz parte do ritual de
caminhadas do Canindé que,
sentindo a derrota, metade da
torcida parta em longas excursões até o outro lado do estádio,
para xingar a diretoria.
Felizmente não foi o caso
desta terça, onde só se ouviram
alguns "senãos" depois que o
Marília empatou. Ao contrário
do usual, havia até uma certa
confiança no time. Como se
trata do Canindé, tal confiança
se traduzia em silêncio, pois a
gritaria de estádios comuns fica
reservada para as horas piores.
Tamanho era o silêncio que o
são-paulino Banzo não suportou: passou a berrar para incentivar o time, como se estivesse
no Morumbi. Conheceu outra
faceta das arquibancadas do
Canindé: seus gritos eram ouvidos pelos jogadores, assim como os gritos dos jogadores são
ouvidos pelos torcedores.
Tudo no Canindé é comunicação pessoal, algo inteiramente desconhecido em estádios
triviais. Mas isso é algo íntimo,
que talvez não consiga explicar
nem com recurso à imagem da
televisão. Em tempos de globalização, o jogo foi gravado, e talvez até a torcida. O problema é
que a imagem engana. Visto pela TV, um jogo no Canindé se
parece com outro no Maracanã
ou no Camp Nou. A tela não
mostra o que se passa de fato.
Sei o que estão pensando: talvez a arquibancada do Canindé
não exista. Ali, vida é sonho.
Jorge Caldeira é sociólogo, paulistano e torcedor roxo da Portuguesa. Autor de, entre outros,
"Mauá, Empresário do Império" (ed. Companhia das Letras) e "Ronaldo - Glória e Drama no
Futebol" (ed. Editora 34).
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