São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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Torcida ao pé do ouvido

JORGE CALDEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

As arquibancadas do Canindé são, cada vez mais, parte de um universo paralelo, algo baço e irreal que sobrevive numa dobra do tempo, num ponto do espaço que todos sabem onde fica mas ninguém consegue chegar. Falo delas por experiência, garanto que existem; e no entanto tenho a impressão de estar sendo lido como se tudo fosse a mais pura ficção. Mas não. São fatos, e vamos a eles: estive lá na última terça, dia de frio e chuva.
Tenho poucas testemunhas, é verdade: meu filho Júlio e seu amigo são-paulino, o Banzo.
As arquibancadas do Canindé, creiam, são freqüentadas. Alguma coisa em torno de 200 pessoas nessa noite. Todos de pé, para evitar o cimento molhado. E, para evitar o pior, a solidão, a trupe se junta atrás do gol onde a Portuguesa ataca. Aqui se entra em outra dobra. Ao contrário das arquibancadas normais, onde a presença se alonga no tempo (é preciso chegar cedo para conseguir um bom lugar) e se comprime no espaço das pessoas grudadas, ver um jogo da Lusa é uma experiência peripatética: andar de um lado para o outro durante o jogo faz parte do programa.
Outra característica própria das arquibancadas do Canindé é a relação sentimental que liga os torcedores ao time. Com o perdão da expressão de inveja, qualquer imbecil pode torcer para um time grande, apagar o duro das derrotas e manter suas esperanças de vitórias futuras à custa das lembranças de bons resultados. Mas é preciso um laço de outra espécie para estar na arquibancada de um time que mais perde que ganha, onde as horas amargas são inevitáveis. Faz parte do ritual de caminhadas do Canindé que, sentindo a derrota, metade da torcida parta em longas excursões até o outro lado do estádio, para xingar a diretoria.
Felizmente não foi o caso desta terça, onde só se ouviram alguns "senãos" depois que o Marília empatou. Ao contrário do usual, havia até uma certa confiança no time. Como se trata do Canindé, tal confiança se traduzia em silêncio, pois a gritaria de estádios comuns fica reservada para as horas piores. Tamanho era o silêncio que o são-paulino Banzo não suportou: passou a berrar para incentivar o time, como se estivesse no Morumbi. Conheceu outra faceta das arquibancadas do Canindé: seus gritos eram ouvidos pelos jogadores, assim como os gritos dos jogadores são ouvidos pelos torcedores.
Tudo no Canindé é comunicação pessoal, algo inteiramente desconhecido em estádios triviais. Mas isso é algo íntimo, que talvez não consiga explicar nem com recurso à imagem da televisão. Em tempos de globalização, o jogo foi gravado, e talvez até a torcida. O problema é que a imagem engana. Visto pela TV, um jogo no Canindé se parece com outro no Maracanã ou no Camp Nou. A tela não mostra o que se passa de fato. Sei o que estão pensando: talvez a arquibancada do Canindé não exista. Ali, vida é sonho.


Jorge Caldeira é sociólogo, paulistano e torcedor roxo da Portuguesa. Autor de, entre outros, "Mauá, Empresário do Império" (ed. Companhia das Letras) e "Ronaldo - Glória e Drama no Futebol" (ed. Editora 34).


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