São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2010

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JOSÉ GERALDO COUTO

Por linhas tortas


Um artilheiro na seca, como o amante que falha na hora H, deve tentar pensar noutra coisa

UMA DAS IMAGENS mais bonitas deste Brasileirão ocorreu na noite de anteontem no Engenhão, quando os jogadores do Fluminense comemoraram o segundo gol de seu time contra o Grêmio.
O gol foi de Conca, mas o meia argentino foi o primeiro a apontar para o artilheiro Washington e torná-lo o centro da celebração tricolor.
A explicação para o aparente paradoxo é simples: Washington, que está há dez partidas sem marcar, deu o passe para o gol de Conca.
Na verdade, não foi um passe. O Coração Valente, assim chamado por conta da cirurgia cardíaca a que se submeteu em 2003, recebeu a bola de Conca e chutou para o gol, mas errou. O argentino chegou a tempo de consertar e desviar a bola para as redes.
Para provar mais uma vez que os deuses da bola escrevem certo por linhas mal traçadas, o erro se transmutou em acerto.
Um chute torto virou "assistência". E Washington voltou a ser festejado, mesmo sem ter quebrado seu longo jejum de gols.
Um artilheiro que passa vários jogos sem marcar é como um amante que falha seguidamente na cama. A analogia não me parece leviana nem gratuita.
Nos dois casos, o sentimento de impotência se autoalimenta. Ao não "comparecer", o sujeito se sente inseguro. Ao se sentir inseguro, atrapalha-se, fica afoito, perde o foco e, por fim, broxa, pipoca, erra o gol.
Quase todos os goleadores passam por fases de seca, em que o gol não sai nem com reza brava. A saída, nesses períodos, é se resignar a servir os companheiros, a fazer, como se diz, o papel de garçom. Ou, para prosseguir na analogia libertina, de alcoviteiro.
Como recompensa a esse gesto generoso, o gol, em algum momento, acaba saindo, nem que seja de bico, de canela ou ainda corrigindo um chute torto de outro.
Há que ter, portanto, um certo desapego, no sentido budista do termo. Esquecer temporariamente a necessidade de marcar. Abstrair-se do destino final, concentrar-se na viagem. Como dizia John Lennon, "a vida é o que acontece quando você está ocupado fazendo outros planos".
No mais, o Brasileirão deste ano lembra o do ano passado, em que os clubes na ponta de cima da tabela davam a impressão de não querer ser campeões. Fluminense, Corinthians e Cruzeiro perderam, alternadamente, a possibilidade de abrir uma boa vantagem sobre os adversários. Será campeão quem tiver menos medo de ser feliz.

jgcouto@uol.com.br


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