São Paulo, segunda-feira, 02 de julho de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

livro

Mergulhado na penseira

Leia artigo exclusivo da tradutora da série Harry Potter

LIA WYLER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Alguma coisa começa a borbulhar, uma fumacinha descreve espirais no ar e em meio a um coro de bem-te-vis, vem-vi-vis e vem-fa-bis uma voz cristalina me diz: "Acho que você vai gostar de traduzir o livro que eu trouxe da Inglaterra". Viro-me. Os sons saem da minha penseira, agora um veloz torvelinho que me arranca do chão e me engolfa, trazendo à tona lembranças bem guardadas.
O livro que entra pela janela e pousa em minhas mãos é uma edição barata de papel jornal, com capas excessivamente coloridas. Na primeira, um garoto de óculos grossos com ar de surpresa, uma locomotiva antiga, uma tabuleta verde onde se lê "Hogwarts Express". No alto, enormes letras amarelas sobre uma faixa vermelha anunciam: HARRY POTTER e a pedra filosofal. Abaixo, em preto sobre laranja, JK Rowling, e um selo dourado "1997 Gold Award Winner - Ages 9-11". Na quarta capa um homem que lembra um alquimista, barba, barrete, bigode, trajo multicor, sobraça um cartapácio de ocultismo, com um longo cachimbo.
O meu espanto inicial ao folhear aquele livro feioso de 40 linhas por página foi a sátira à classe média inglesa e suas reações a um gato comum, que lê placas de rua e consulta mapas, a pessoas de vestes extravagantes que se cumprimentam alegremente e ao telejornal que dá conta de estranhos fenômenos celestes. Mas, confesso, não registrei os sinais de que estava iniciando uma extraordinária experiência que me traria alegrias e mágoas e viria contrariar os teóricos trouxas que dizem que o tradutor é invisível dentro e fora do texto.
Em 1998, Rowling, que ainda não era rica nem famosa, recebeu com interesse minhas perguntas sobre os nomes próprios em sua obra, recombinações bem-humoradas e imaginosas de pessoas, lugares e situações milenarmente conhecidas; nomes que misturam realidade e fantasia e que reinventei com sua permissão -uma tarefa tão prazerosa quanto a ginástica lingüística de reproduzir os pequenos textos de jornal, avisos escolares, publicidade e os variados registros que compõem a série.
Durante a tradução, vejo os olhinhos brilhantes de minha neta ao ouvir cada capítulo no intervalo dos deveres de português. No lançamento, duas surpresas: os comentários ácidos de escritores brasileiros inconformados com o espaço que a mídia dava à obra e a polêmica iniciada por um menino de dez anos, leitor da Folha, ao dizer que "trouxa" não era a tradução de "muggle". Indagada, Rowling declarou que, entre centenas de possibilidades, usara a palavra na acepção de tolo, otário, pateta, TROUXA.
Em compensação, mensagens entusiásticas entupiam a lareira da editora. Eu própria recebi cartas comoventes: a de uma mãe que me agradecia o único momento de paz em sua casa -a hora em que lia para os três filhos as aventuras de Harry-, e a do menino que me convidou para trabalhar nas suas empresas imaginárias, na função que eu escolhesse. A série HP mudou muita coisa: a relação do jovem com o livro, do escritor com o jovem, da imprensa e do público com o tradutor e do próprio tradutor com o trabalho. Se isso não é magia, o que mais seria?


LIA WYLER é tradutora.

Texto Anterior: 02 Neurônio: O fim do mundo e o amor
Próximo Texto: Novo game de Harry Potter explora Hogwarts
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.