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livro
Mergulhado na penseira
Leia artigo exclusivo da tradutora da série Harry Potter
LIA WYLER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Alguma coisa começa
a borbulhar, uma fumacinha descreve
espirais no ar e em
meio a um coro de
bem-te-vis, vem-vi-vis e vem-fa-bis uma voz cristalina me
diz: "Acho que você vai gostar
de traduzir o livro que eu trouxe da Inglaterra". Viro-me. Os
sons saem da minha penseira,
agora um veloz torvelinho que
me arranca do chão e me engolfa, trazendo à tona lembranças
bem guardadas.
O livro que entra pela janela e
pousa em minhas mãos é uma
edição barata de papel jornal,
com capas excessivamente coloridas. Na primeira, um garoto
de óculos grossos com ar de
surpresa, uma locomotiva antiga, uma tabuleta verde onde se
lê "Hogwarts Express". No alto,
enormes letras amarelas sobre
uma faixa vermelha anunciam:
HARRY POTTER e a pedra filosofal. Abaixo, em preto sobre
laranja, JK Rowling, e um selo
dourado "1997 Gold Award
Winner - Ages 9-11". Na quarta
capa um homem que lembra
um alquimista, barba, barrete,
bigode, trajo multicor, sobraça
um cartapácio de ocultismo,
com um longo cachimbo.
O meu espanto inicial ao folhear aquele livro feioso de 40
linhas por página foi a sátira à
classe média inglesa e suas reações a um gato comum, que lê
placas de rua e consulta mapas,
a pessoas de vestes extravagantes que se cumprimentam alegremente e ao telejornal que dá
conta de estranhos fenômenos
celestes. Mas, confesso, não registrei os sinais de que estava
iniciando uma extraordinária
experiência que me traria alegrias e mágoas e viria contrariar os teóricos trouxas que dizem que o tradutor é invisível
dentro e fora do texto.
Em 1998, Rowling, que ainda
não era rica nem famosa, recebeu com interesse minhas perguntas sobre os nomes próprios em sua obra, recombinações bem-humoradas e imaginosas de pessoas, lugares e situações milenarmente conhecidas; nomes que misturam realidade e fantasia e que reinventei com sua permissão
-uma tarefa tão prazerosa
quanto a ginástica lingüística
de reproduzir os pequenos textos de jornal, avisos escolares,
publicidade e os variados registros que compõem a série.
Durante a tradução, vejo os
olhinhos brilhantes de minha
neta ao ouvir cada capítulo no
intervalo dos deveres de português. No lançamento, duas surpresas: os comentários ácidos
de escritores brasileiros inconformados com o espaço que a
mídia dava à obra e a polêmica
iniciada por um menino de dez
anos, leitor da Folha, ao dizer
que "trouxa" não era a tradução de "muggle". Indagada, Rowling declarou que, entre centenas de possibilidades, usara a
palavra na acepção de tolo, otário, pateta, TROUXA.
Em compensação, mensagens entusiásticas entupiam a
lareira da editora. Eu própria
recebi cartas comoventes: a de
uma mãe que me agradecia o
único momento de paz em sua
casa -a hora em que lia para os
três filhos as aventuras de
Harry-, e a do menino que me
convidou para trabalhar nas
suas empresas imaginárias, na
função que eu escolhesse. A série HP mudou muita coisa: a
relação do jovem com o livro,
do escritor com o jovem, da imprensa e do público com o tradutor e do próprio tradutor
com o trabalho. Se isso não é
magia, o que mais seria?
LIA WYLER é tradutora.
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