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Free way
Aspas que protegem e aprisionam
GUSTAVO IOSCHPE
Colunista da Folha
Na primeira vez em que fui à
Redação da Folha, lembro que o
que mais me chamou a atenção
foi um pequeno placar eletrônico colocado acima de cada editoria e que, com pouco mais de
meio metro de largura e com
um letreiro de uns dez centímetros de altura, cuspia freneticamente letras e mais letras em seu
néon vermelho insuportável.
Era o Programa de Qualidade
da Folha, e o que o "trumbico"
não se cansava de repetir eram
os erros de cada edição: ortografia: 4 zuuuum, gramática: 6
zuuuum, concordância: 3
zuuum e por aí afora. O jornalismo é, intrinsecamente, um negócio estranho, porque os jornalistas se acham uma mistura
de artistas e revolucionários,
mas trabalham para uma empresa que, como todas as empresas, quer é ganhar dinheiro.
Mas, mesmo esquecendo-se das
veleidades dos jornalistas, aquele letreiro era Big Brother demais, humilhante demais.
Compreensível, porém. A salvaguarda da língua é tarefa e
paixão de qualquer letrado mais
entusiasmado ("Minha pátria é
minha língua", como diria Paul
Célan by Caetano Veloso), ainda mais de uma empresa de comunicação. Mas salvaguarda de
que, exatamente? Ora, de erros,
cara-pálida. Aquela coisa feia
que as tias do colégio riscam
com a caneta vermelha.
Mas e quem determina o erro,
o que é certo e errado? Ah, aí a
coisa fica mais interessante. Diriam os ingênuos e/ou pragmáticos (não seriam a mesma coisa?) que o certo é o que está no
Aurélio, nas gramáticas, nos
oráculos saídos da moribunda
ABL. Mas, peraí: a língua não
vem do
dicionário ou da
gramática. Todos
esses textos simplesmente
codificam a
língua que, como a palavra já
indica, vem do
que nós falamos com essa boca
que a terra há de comer e Luana
há de beijar. Caso não seja óbvio, basta notar que a comunicação verbal precede a escrita
por vasta margem. Começamos
a marcha para a fala há uns 50
milhões de anos, quando nossos
parentes distantes desenvolveram o polegar opositor e já não
precisávamos ficar de boca na
comida para trinchá-la. Com o
bocão desocupado por tanto
tempo, começou a tagarelice,
enquanto a escrita só surgiu há
5.000 anos, por razões bem menos naturais e espontâneas, como o desejo de perpetuar memórias, contar histórias etc.
Assim, decorre que a língua
escrita deveria ser mera transposição da língua falada, não ? E
por que não é? Por uma série de
razões. Uma, por facilidade: estabelecem-se as regras no começo da partida, e só se as trocam
quando, "de facto", já não estiver dando mais pra jogar. Outra, por economia, já que cada
troca gramatical implica uma
série de custos. Outra, pela própria natureza dos meios, já que
o escrito, como um lago, tende
para o perene, enquanto a língua falada está em constante
mudança, qual um rio. Mas,
fundamentalmente, a língua
permanece congelada porque
aqueles que a codificam, possuidores que são do universalmente ratificado como correto, recusam-se a abandonar seus castelos de conhecimento.
Língua é poder, eis o xis da
questão. A correção gramatical
demonstra não só apreço por
Camões, mas uma educação de
nível, boa família e um ambiente salutar. Língua é berço. E, no
momento em que serve para demonstrar origem, também serve como fator seletivo, a barrar
todos aqueles que não comungam da mesma semântica.
Quem escreve "pobrema" não é
só inculto, mas provavelmente
sem escolaridade e, portanto,
pobre. Assim, escreveu pobrema, leva xis vermelho da tia, não
entra na universidade, não consegue o empréstimo no banco
nem que o delegado o atenda ou
o médico o socorra e, opa!,
quando se vê já está trabalhando
de empregada ou jardineiro na
casa de alguém que soletra problema em alemão, com trema e
tudo. Quando, na verdade, "pobrema" está mais certo do que
"problema", se entendermos a
língua como construção popular. Se a voz do povo for a voz de
Deus, então todos esses dicionaristas e gramáticos estão surdos.
P.S. Depois de uma pintura
milagrosa, sumiu o letreiro da
Redação, pelo menos o de cima
deste caderno. Mas não há razão
para preocupações, que colocaram pra me vigiar uma turma
de revisores que tasca aspas em
tudo que está na boca, mas não
no Aurélio. Depois de lutas inglórias, caro leitor, já consigo
usar um "pra" sem aspas. Quando puder dizer "tem que" (e não
"de") e "tem vezes..." (e não
"há"), tem festa lá em casa.
Gustavo Ioschpe, 22, mora em Londres.E-mail:
desembucha@uol.com.br
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