São Paulo, Segunda-feira, 13 de Dezembro de 1999


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Free way
Aspas que protegem e aprisionam

GUSTAVO IOSCHPE
Colunista da Folha

Na primeira vez em que fui à Redação da Folha, lembro que o que mais me chamou a atenção foi um pequeno placar eletrônico colocado acima de cada editoria e que, com pouco mais de meio metro de largura e com um letreiro de uns dez centímetros de altura, cuspia freneticamente letras e mais letras em seu néon vermelho insuportável. Era o Programa de Qualidade da Folha, e o que o "trumbico" não se cansava de repetir eram os erros de cada edição: ortografia: 4 zuuuum, gramática: 6 zuuuum, concordância: 3 zuuum e por aí afora. O jornalismo é, intrinsecamente, um negócio estranho, porque os jornalistas se acham uma mistura de artistas e revolucionários, mas trabalham para uma empresa que, como todas as empresas, quer é ganhar dinheiro. Mas, mesmo esquecendo-se das veleidades dos jornalistas, aquele letreiro era Big Brother demais, humilhante demais.
Compreensível, porém. A salvaguarda da língua é tarefa e paixão de qualquer letrado mais entusiasmado ("Minha pátria é minha língua", como diria Paul Célan by Caetano Veloso), ainda mais de uma empresa de comunicação. Mas salvaguarda de que, exatamente? Ora, de erros, cara-pálida. Aquela coisa feia que as tias do colégio riscam com a caneta vermelha.
Mas e quem determina o erro, o que é certo e errado? Ah, aí a coisa fica mais interessante. Diriam os ingênuos e/ou pragmáticos (não seriam a mesma coisa?) que o certo é o que está no Aurélio, nas gramáticas, nos oráculos saídos da moribunda ABL. Mas, peraí: a língua não vem do dicionário ou da gramática. Todos esses textos simplesmente codificam a língua que, como a palavra já indica, vem do que nós falamos com essa boca que a terra há de comer e Luana há de beijar. Caso não seja óbvio, basta notar que a comunicação verbal precede a escrita por vasta margem. Começamos a marcha para a fala há uns 50 milhões de anos, quando nossos parentes distantes desenvolveram o polegar opositor e já não precisávamos ficar de boca na comida para trinchá-la. Com o bocão desocupado por tanto tempo, começou a tagarelice, enquanto a escrita só surgiu há 5.000 anos, por razões bem menos naturais e espontâneas, como o desejo de perpetuar memórias, contar histórias etc.
Assim, decorre que a língua escrita deveria ser mera transposição da língua falada, não ? E por que não é? Por uma série de razões. Uma, por facilidade: estabelecem-se as regras no começo da partida, e só se as trocam quando, "de facto", já não estiver dando mais pra jogar. Outra, por economia, já que cada troca gramatical implica uma série de custos. Outra, pela própria natureza dos meios, já que o escrito, como um lago, tende para o perene, enquanto a língua falada está em constante mudança, qual um rio. Mas, fundamentalmente, a língua permanece congelada porque aqueles que a codificam, possuidores que são do universalmente ratificado como correto, recusam-se a abandonar seus castelos de conhecimento.
Língua é poder, eis o xis da questão. A correção gramatical demonstra não só apreço por Camões, mas uma educação de nível, boa família e um ambiente salutar. Língua é berço. E, no momento em que serve para demonstrar origem, também serve como fator seletivo, a barrar todos aqueles que não comungam da mesma semântica. Quem escreve "pobrema" não é só inculto, mas provavelmente sem escolaridade e, portanto, pobre. Assim, escreveu pobrema, leva xis vermelho da tia, não entra na universidade, não consegue o empréstimo no banco nem que o delegado o atenda ou o médico o socorra e, opa!, quando se vê já está trabalhando de empregada ou jardineiro na casa de alguém que soletra problema em alemão, com trema e tudo. Quando, na verdade, "pobrema" está mais certo do que "problema", se entendermos a língua como construção popular. Se a voz do povo for a voz de Deus, então todos esses dicionaristas e gramáticos estão surdos.
P.S. Depois de uma pintura milagrosa, sumiu o letreiro da Redação, pelo menos o de cima deste caderno. Mas não há razão para preocupações, que colocaram pra me vigiar uma turma de revisores que tasca aspas em tudo que está na boca, mas não no Aurélio. Depois de lutas inglórias, caro leitor, já consigo usar um "pra" sem aspas. Quando puder dizer "tem que" (e não "de") e "tem vezes..." (e não "há"), tem festa lá em casa.


Gustavo Ioschpe, 22, mora em Londres.E-mail: desembucha@uol.com.br



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