São Paulo, segunda-feira, 30 de julho de 2007

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Disco traz Brasil possível

PAULO RICARDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não é exagero dizer que "Tropicália" é o "Sgt. Pepper's..." nacional, cuja capa, por coincidência, emoldurava minha página de estréia no Folhateen (edição de 11/6). Poderoso liquidificador de influências, essa obra-prima representa um dos maiores espasmos de genialidade da história da música popular brasileira. Os tropicalistas assimilaram como ninguém o "zeitgeist" (espírito da época), mesclando (Bat) macumba com o Senhor do Bonfim (o tal do sincretismo), guitarras, orquestra e penico, elegante como uma xícara de chá nas mãos do maestro Rogério Duprat. E, é claro, esse tal de Roque Enrow.
Mas vamos ao disco: curiosamente, a canção "Tropicália", de Caetano, não faz parte do repertório. "Misere Nobis" começa pomposa, em latim e com órgão de igreja, remetendo à música sacra. E o ministro da Cultura dá início ao ritual pagão. E disse o campônio à sua amada, logo de cara os caras escancaram Vicente Celestino, indo direto ao assunto, ao veio, às veias abertas da América Latina, à dor e ao drama dessa histórica trágica e sombria.
"Panis et Circenses" é uma aula de inventividade aliada aos recursos eletrônicos que, na época, engatinhavam, com estilhaços de Beatles e música concreta. Cheia de referências, como o nome sugere, "Geléia Geral" mistura bumba-meu-boi, "O Guarani" de Carlos Gomes, "All the Way" de Sinatra, "Carolina" de Chico, batucada e a batuta de Duprat, nosso George Martin.
"Baby", pop, bela, "aquela canção do Roberto", com "please, stay by me, Diana". Cores, nomes. "Três Caravelas", um mambo, trazia o gene da sensualidade latina que desabrocharia nos Secos & Molhados de Ney Matogrosso. "Mamãe Coragem", delicada, feminina, feminista, Gal.
"Batmacumba", em quadrinhos, é concreta, é o orgasmo apoteótico dessa relação incestuosa, e o "Hino ao Senhor do Bonfim" encerra com tiros de canhão esse épico.
Nunca se viu nada parecido com essa enciclopédia lítero-musical. Não é à toa que os personagens dessa epopéia continuam firmes, fortes e relevantes. Não haveria o BRock, nem a MPB, tal como a conhecemos. (Re)fazendo história, aqueles meninos & meninas cantaram um Brasil possível, brilhante, de Oswald e Gonçalves Dias, e, não menos importante, em plena ditadura militar. Hoje a tropicália influencia gente como Beck e Devendra, tem exposições em Londres, ressuscita os Mutantes e tomou o poder.
Ou não.


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