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Disco traz Brasil possível
PAULO RICARDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não é exagero dizer
que "Tropicália" é
o "Sgt. Pepper's..."
nacional, cuja capa,
por coincidência,
emoldurava minha página de
estréia no Folhateen (edição
de 11/6). Poderoso liquidificador de influências, essa obra-prima representa um dos
maiores espasmos de genialidade da história da música popular brasileira. Os tropicalistas assimilaram como ninguém
o "zeitgeist" (espírito da época), mesclando (Bat) macumba
com o Senhor do Bonfim (o tal
do sincretismo), guitarras, orquestra e penico, elegante como uma xícara de chá nas mãos
do maestro Rogério Duprat. E,
é claro, esse tal de Roque
Enrow.
Mas vamos ao disco: curiosamente, a canção "Tropicália",
de Caetano, não faz parte do repertório. "Misere Nobis" começa pomposa, em latim e com
órgão de igreja, remetendo à
música sacra. E o ministro da
Cultura dá início ao ritual pagão. E disse o campônio à sua
amada, logo de cara os caras escancaram Vicente Celestino,
indo direto ao assunto, ao veio,
às veias abertas da América Latina, à dor e ao drama dessa
histórica trágica e sombria.
"Panis et Circenses" é uma
aula de inventividade aliada
aos recursos eletrônicos que,
na época, engatinhavam, com
estilhaços de Beatles e música
concreta. Cheia de referências,
como o nome sugere, "Geléia
Geral" mistura bumba-meu-boi, "O Guarani" de Carlos Gomes, "All the Way" de Sinatra,
"Carolina" de Chico, batucada
e a batuta de Duprat, nosso
George Martin.
"Baby", pop, bela, "aquela
canção do Roberto", com
"please, stay by me, Diana".
Cores, nomes. "Três Caravelas", um mambo, trazia o gene
da sensualidade latina que desabrocharia nos Secos & Molhados de Ney Matogrosso.
"Mamãe Coragem", delicada,
feminina, feminista, Gal.
"Batmacumba", em quadrinhos, é concreta, é o orgasmo
apoteótico dessa relação incestuosa, e o "Hino ao Senhor do
Bonfim" encerra com tiros de
canhão esse épico.
Nunca se viu nada parecido
com essa enciclopédia lítero-musical. Não é à toa que os personagens dessa epopéia continuam firmes, fortes e relevantes. Não haveria o BRock, nem
a MPB, tal como a conhecemos. (Re)fazendo história,
aqueles meninos & meninas
cantaram um Brasil possível,
brilhante, de Oswald e Gonçalves Dias, e, não menos importante, em plena ditadura militar. Hoje a tropicália influencia
gente como Beck e Devendra,
tem exposições em Londres,
ressuscita os Mutantes e tomou o poder.
Ou não.
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