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Bombardeio a Bagdá impede noivos de se verem e jovens de ouvir música americana
No meio do inferno
Faleh Kheiber - 25.mar.03/Reuters
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Garota do Iraque anda sobre escombros de prédio derrubado por bombas na capita |
LÚCIO RIBEIRO
DA REPORTAGEM LOCAL
Q uando estava à frente do famoso grupo The Smiths, o compositor inglês
Morrissey cantava que, se não fosse o
amor, seria a bomba que promoveria sua
união com a pessoa amada.
O romantismo tocante do bardo inglês
não serve para o realismo funesto experimentado pelos jovens Rani Fayq e Saba
Faris, ele 23, ela 21 anos, que sobrevivem
em Bagdá, a capital do Iraque.
No caso de Rani e Saba, a bomba (ou as
muitas bombas) tem é separado o casal
de noivos que programou a união para
julho próximo, isso se a guerra Estados
Unidos-Iraque não se pronunciar contra
o matrimônio.
A Folha fez contato telefônico com os
dois jovens bagdali na última terça-feira,
com o apoio linguístico da dentista Meada Hussein (nenhuma relação, diga-se),
iraquiana residente em São Paulo, que
serviu de intérprete.
"Eu não consigo ver a Saba já tem uma
semana, 12 horas e dez minutos", contabilizava Rani no momento da entrevista.
O casal mora em bairros que circundam o centro histórico de Bagdá e ficam
distantes cerca de 20 quilômetros um do
outro. Mas, por causa dos constantes
bombardeios, não se arriscam a encarar
o percurso que os separa.
Não se arriscam de dia, "quando dá para sair de casa e ir ao supermercado, em
caso de necessidade", conta Rani.
À noite, quando os ataques se intensificam, a instrução é se trancar em um aposento que considerar mais seguro, cada
um com seus familiares e providos de alimentos, água e remédios. "E dominó,
para passar o tempo", completa o rapaz
bagdali, que é universitário e cursa contabilidade.
Telefone, quando tem linha, ajuda a
aliviar a saudade do casal.
E-mail já não dá mais, porque os computadores, assim como boa parte dos
aparelhos elétricos das casas, são desligados por "sugestão" das autoridades locais. E pelo medo de danificar a aparelhagem doméstica, com o fácil curto-circuito que pode advir de uma rede elétrica
própria de uma cidade sob bombas.
"De dia dá até para imaginar que a vida
está normal", diz Saba, a noiva da cidade
que é famosa no mundo árabe pelo apelido de "Noiva do Oriente Médio".
"Não há ataques, vamos ao mercado,
fazemos comida, e os meninos até jogam
bola. Tudo para passar o tempo e esperar
a noite chegar, para ficar com medo em
um quartinho dentro de casa", narra Saba, que não tem ido à universidade porque não há uma escola em funcionamento no Iraque.
"Ontem caíram bombas numas casas
perto daqui, próximo a um hospital, e
chegou a quebrar os vidros e janelas da
minha casa. Mas nada aconteceu com
ninguém da minha família", narra a jovem, amedrontada.
Essa conversa, é bom lembrar, aconteceu na terça-feira da semana passada. O
forte ataque da noite da sexta anterior,
taticamente batizado de "Choque e Pavor", já havia ferido mais de 200 civis em
Bagdá, metade deste número mulheres e
crianças. Mas de lá para cá muita coisa
mudou.
Até a noite de quinta-feira passada,
quando esta edição foi fechada e a guerra
entrava em sua segunda semana, (1) os
ataques da
coalizão anglo-americana contra a capital iraquiana já haviam
se multiplicado, (2) uma
tempestade de
areia tinha tingido a cidade de
vermelho, (3) para contrastar com o
preto da nuvem de
fumaça incessante
que vinha da queima
de petróleo por parte
dos militares locais, uma
artimanha para confundir a
artilharia dos inimigos do Ocidente.
O melhor companheiro de Saba,
pelo relato da Julieta involuntária desta guerra, é mesmo o telefone.
"É como consigo falar com meus amigos. E com Rani", completa a garota, referindo-se por último ao seu "Romeu".
Mas o telefone, porém, impediu o casal
de emitir à Folha suas impressões pessoais da guerra em si. Sobre Saddam
Hussein, Bush, contra, a favor, ninguém
fala abertamente por conta do risco de
grampo.
"Um tio meu já sofreu por causa disso", avisou Rani.
Para abafar os sons das bombas que
caem sobre sua cidade, outro jovem bagdali, Fadi Fayq, 19, irmão de Rani, recorre à música pop.
À noite, no confinamento do quarto,
enquanto Rani fica ligado no noticiário,
o adolescente iraquiano busca rádios de
língua inglesa
para ouvir grupos...
americanos. Seu preferido é
o grupo de meninos Backstreet Boys. As
boy bands têm a preferência da garotada
bagdali.
Mas as rádios que transmitem na língua dos EUA e Inglaterra estão sendo
proibidas no Iraque.
Os Backstreet Boys não farão mais
companhia para Fadi. Assim como os
Smiths e sua história de amor e bombas
não fazem mais sentido para seu irmão
mais velho.
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