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São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 2003

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Bombardeio a Bagdá impede noivos de se verem e jovens de ouvir música americana

No meio do inferno

Faleh Kheiber - 25.mar.03/Reuters
Garota do Iraque anda sobre escombros de prédio derrubado por bombas na capita


LÚCIO RIBEIRO
DA REPORTAGEM LOCAL

Q uando estava à frente do famoso grupo The Smiths, o compositor inglês Morrissey cantava que, se não fosse o amor, seria a bomba que promoveria sua união com a pessoa amada.
O romantismo tocante do bardo inglês não serve para o realismo funesto experimentado pelos jovens Rani Fayq e Saba Faris, ele 23, ela 21 anos, que sobrevivem em Bagdá, a capital do Iraque.
No caso de Rani e Saba, a bomba (ou as muitas bombas) tem é separado o casal de noivos que programou a união para julho próximo, isso se a guerra Estados Unidos-Iraque não se pronunciar contra o matrimônio.
A Folha fez contato telefônico com os dois jovens bagdali na última terça-feira, com o apoio linguístico da dentista Meada Hussein (nenhuma relação, diga-se), iraquiana residente em São Paulo, que serviu de intérprete.
"Eu não consigo ver a Saba já tem uma semana, 12 horas e dez minutos", contabilizava Rani no momento da entrevista.
O casal mora em bairros que circundam o centro histórico de Bagdá e ficam distantes cerca de 20 quilômetros um do outro. Mas, por causa dos constantes bombardeios, não se arriscam a encarar o percurso que os separa.
Não se arriscam de dia, "quando dá para sair de casa e ir ao supermercado, em caso de necessidade", conta Rani.
À noite, quando os ataques se intensificam, a instrução é se trancar em um aposento que considerar mais seguro, cada um com seus familiares e providos de alimentos, água e remédios. "E dominó, para passar o tempo", completa o rapaz bagdali, que é universitário e cursa contabilidade.
Telefone, quando tem linha, ajuda a aliviar a saudade do casal.
E-mail já não dá mais, porque os computadores, assim como boa parte dos aparelhos elétricos das casas, são desligados por "sugestão" das autoridades locais. E pelo medo de danificar a aparelhagem doméstica, com o fácil curto-circuito que pode advir de uma rede elétrica própria de uma cidade sob bombas.
"De dia dá até para imaginar que a vida está normal", diz Saba, a noiva da cidade que é famosa no mundo árabe pelo apelido de "Noiva do Oriente Médio".
"Não há ataques, vamos ao mercado, fazemos comida, e os meninos até jogam bola. Tudo para passar o tempo e esperar a noite chegar, para ficar com medo em um quartinho dentro de casa", narra Saba, que não tem ido à universidade porque não há uma escola em funcionamento no Iraque.
"Ontem caíram bombas numas casas perto daqui, próximo a um hospital, e chegou a quebrar os vidros e janelas da minha casa. Mas nada aconteceu com ninguém da minha família", narra a jovem, amedrontada.
Essa conversa, é bom lembrar, aconteceu na terça-feira da semana passada. O forte ataque da noite da sexta anterior, taticamente batizado de "Choque e Pavor", já havia ferido mais de 200 civis em Bagdá, metade deste número mulheres e crianças. Mas de lá para cá muita coisa mudou.
Até a noite de quinta-feira passada, quando esta edição foi fechada e a guerra entrava em sua segunda semana, (1) os ataques da coalizão anglo-americana contra a capital iraquiana já haviam se multiplicado, (2) uma tempestade de areia tinha tingido a cidade de vermelho, (3) para contrastar com o preto da nuvem de fumaça incessante que vinha da queima de petróleo por parte dos militares locais, uma artimanha para confundir a artilharia dos inimigos do Ocidente.
O melhor companheiro de Saba, pelo relato da Julieta involuntária desta guerra, é mesmo o telefone.
"É como consigo falar com meus amigos. E com Rani", completa a garota, referindo-se por último ao seu "Romeu".
Mas o telefone, porém, impediu o casal de emitir à Folha suas impressões pessoais da guerra em si. Sobre Saddam Hussein, Bush, contra, a favor, ninguém fala abertamente por conta do risco de grampo.
"Um tio meu já sofreu por causa disso", avisou Rani.
Para abafar os sons das bombas que caem sobre sua cidade, outro jovem bagdali, Fadi Fayq, 19, irmão de Rani, recorre à música pop.
À noite, no confinamento do quarto, enquanto Rani fica ligado no noticiário, o adolescente iraquiano busca rádios de língua inglesa para ouvir grupos... americanos. Seu preferido é o grupo de meninos Backstreet Boys. As boy bands têm a preferência da garotada bagdali.
Mas as rádios que transmitem na língua dos EUA e Inglaterra estão sendo proibidas no Iraque.
Os Backstreet Boys não farão mais companhia para Fadi. Assim como os Smiths e sua história de amor e bombas não fazem mais sentido para seu irmão mais velho.

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