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LITERATURA
Clarice inventa uma história verdadeira
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
"A Hora da Estrela", último livro de Clarice Lispector, é
uma narrativa diferente daquelas
que tanto caracterizaram o universo da autora. O mundo interior que convida à reflexão a partir de pequenos episódios do cotidiano aqui parece ceder espaço ao
mundo exterior que condiciona o
destino da personagem, uma migrante nordestina que vai tentar a
vida no Rio de Janeiro.
Trata-se de uma história tão
previsível que mal chega a ser
contada -é antes adivinhada, já
que é bem conhecida a sina das
moças nordestinas em aventura
errante no sul do país. Como adverte o próprio narrador, a história é inventada, mas verdadeira.
E talvez por se tratar de uma história "verdadeira" seja tão difícil
para esse narrador escapar do
longo exercício metalingüístico
em que ensaia a aproximação
com a personagem.
Trata-se de um narrador que é
apresentado tal qual um personagem. Seu nome é Rodrigo S.M.-
não por acaso um homem, para
que a história não soe "piegas". É
ele que nos revela como nasceu o
livro: "É que numa rua do Rio de
Janeiro peguei no ar de relance o
sentimento de perdição no rosto
de uma moça nordestina".
Essa moça é Macabéa, uma criatura simples, frágil, de uma delicadeza bruta. Inocente em sua absoluta falta de desejos e ambições,
é exemplo de conformismo diante de um mundo hostil. É como se
nos pedisse desculpas por existir.
Em certa passagem do romance,
ao ser despedida por seu patrão,
pede-lhe desculpas por tê-lo
aborrecido. Do mesmo modo,
perde seu namorado para a colega
de escritório e aceita o fato candidamente, sem desespero nem ressentimento -como se sentimentos também fossem um luxo que
não tivesse o direito de usufruir.
Narrativa incomum, o romance
é uma seqüência mais de instantâneos ou cenas do que propriamente de ações. Importa mais saber quem é Macabéa, como vive
ou como reage diante da vida em
sua indiferença do que contar-lhe
propriamente a história -uma
história tragicamente óbvia, uma
história de aniquilamento. Seu
namorado, Olímpico de Jesus,
embora também fosse um migrante, submetido à mesma hostilidade da cidade grande e às mesmas agruras da vida no Nordeste,
tinha a força vinda de alguma malícia aprendida, sabia mentir, tinha matado um jagunço, era
"macho de briga".
A Macabéa, em sua infantilidade, restaria tomar emprestado da
cartomante um futuro provisório,
imaginado, pateticamente desmentido pela realidade.
Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha e autora dos livros "Redação Linha a Linha"
(Publifolha) e "Uso da Vírgula" (Manole).
E-mail: tnicoleti@folhasp.com.br
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