São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004
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LITERATURA

Clarice inventa uma história verdadeira

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A Hora da Estrela", último livro de Clarice Lispector, é uma narrativa diferente daquelas que tanto caracterizaram o universo da autora. O mundo interior que convida à reflexão a partir de pequenos episódios do cotidiano aqui parece ceder espaço ao mundo exterior que condiciona o destino da personagem, uma migrante nordestina que vai tentar a vida no Rio de Janeiro.
Trata-se de uma história tão previsível que mal chega a ser contada -é antes adivinhada, já que é bem conhecida a sina das moças nordestinas em aventura errante no sul do país. Como adverte o próprio narrador, a história é inventada, mas verdadeira.
E talvez por se tratar de uma história "verdadeira" seja tão difícil para esse narrador escapar do longo exercício metalingüístico em que ensaia a aproximação com a personagem.
Trata-se de um narrador que é apresentado tal qual um personagem. Seu nome é Rodrigo S.M.- não por acaso um homem, para que a história não soe "piegas". É ele que nos revela como nasceu o livro: "É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina".
Essa moça é Macabéa, uma criatura simples, frágil, de uma delicadeza bruta. Inocente em sua absoluta falta de desejos e ambições, é exemplo de conformismo diante de um mundo hostil. É como se nos pedisse desculpas por existir. Em certa passagem do romance, ao ser despedida por seu patrão, pede-lhe desculpas por tê-lo aborrecido. Do mesmo modo, perde seu namorado para a colega de escritório e aceita o fato candidamente, sem desespero nem ressentimento -como se sentimentos também fossem um luxo que não tivesse o direito de usufruir.
Narrativa incomum, o romance é uma seqüência mais de instantâneos ou cenas do que propriamente de ações. Importa mais saber quem é Macabéa, como vive ou como reage diante da vida em sua indiferença do que contar-lhe propriamente a história -uma história tragicamente óbvia, uma história de aniquilamento. Seu namorado, Olímpico de Jesus, embora também fosse um migrante, submetido à mesma hostilidade da cidade grande e às mesmas agruras da vida no Nordeste, tinha a força vinda de alguma malícia aprendida, sabia mentir, tinha matado um jagunço, era "macho de briga".
A Macabéa, em sua infantilidade, restaria tomar emprestado da cartomante um futuro provisório, imaginado, pateticamente desmentido pela realidade.


Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha e autora dos livros "Redação Linha a Linha" (Publifolha) e "Uso da Vírgula" (Manole).
E-mail: tnicoleti@folhasp.com.br


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