São Paulo, quinta-feira, 09 de janeiro de 2003
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PORTUGUÊS

Contradição pode ser apenas aparente

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na prova de português da Fuvest, realizada no domingo passado, foi pedido aos candidatos que explicassem o paradoxo contido em um texto de Rubem Braga. Na anedota contada pelo autor, o riso do leitor é provocado pela aparente contradição enunciada por um garçom lusitano que, ao ouvir a conversa de dois brasileiros num restaurante lisboeta, lhes indaga: "Que raio de língua é essa que estão aí a falar, que eu percebo tudo?". Ora, o paradoxo é uma figura de pensamento que consiste em afirmar algo que, apesar de parecer contraditório, é verdadeiro. O garçom de Rubem Braga, ao perguntar "que raio de língua" era aquela, revelou estar diante de um idioma desconhecido, mas, ao dizer que percebia tudo, demonstrou reconhecê-lo. O paradoxo está no fato de a língua falada pelos brasileiros ser, a um só tempo, conhecida e desconhecida dele. Absurdo? Apenas aparentemente, pois, embora seja uma só língua, o português manifesta-se de modo diverso no Brasil e em Portugal. As diferenças entre os falares são patentes -estão na pronúncia, na escolha vocabular, na sintaxe etc. Daí a estranheza e a familiaridade sentidas simultaneamente pelo garçom. Camões, no conhecido soneto em que tenta definir o amor, enreda-se em uma seqüência de paradoxos: "Amor é fogo que arde sem se ver/ É ferida que dói e não se sente/ É um contentamento descontente/ É dor que desatina sem doer". E, ao final, conclui, perguntando: "Mas como causar pode seu favor/ Nos corações humanos amizade,/ Se tão contrário a si é o mesmo Amor?". A resposta cabe a quem já se tiver emaranhado nas lides amorosas... Já, nos versos de Fernando Pessoa, em "Tabacaria": "Falhei em tudo./ Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada", a contradição é levada ao paroxismo: algo é idêntico ao seu oposto. A sensação de ter falhado em tudo, ainda que por um artifício retórico, confunde-se com a de não ter falhado em nada. Também ocorre paradoxo na definição do sertanejo como "Hércules-Quasímodo", proposta por Euclydes da Cunha em sua obra monumental "Os Sertões". Unindo ao nome do semideus grego, símbolo da força, o do corcunda, símbolo da fealdade, imortalizado na obra de Victor Hugo, Euclydes criou uma imagem vigorosa e sintética, que beira o patético, por meio da qual exprimiu o solene e o grotesco da destemida resistência do sertanejo às adversidades.


Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha


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