São Paulo, quinta-feira, 30 de setembro de 2004
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GRAMÁTICA

Sobre causas e explicações: enunciação e enunciado

ODILON SOARES LEME
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando se diz a alguém "eu te amo", a pessoa fica muito feliz. Mas o que faz a felicidade não é tanto o enunciado. O importante é a enunciação, o ato de dizer. Amar sem nunca "declarar" que se ama vai arrefecendo o amor. É preciso multiplicar as enunciações, embora o enunciado seja mais que conhecido, pois cada enunciação acaba sendo uma prova concreta do enunciado.
Se você entendeu a diferença entre enunciação e enunciado, isso é muito importante para a sua compreensão gramatical. De fato, existem orações que justificam o enunciado, e há orações que justificam a enunciação. As que justificam o enunciado são as subordinadas adverbiais causais. Já as que justificam a enunciação classificam-se como orações coordenadas explicativas.
Isso pode parecer simplista, já que, no campo filosófico, as noções de causa e explicação abrem campo para sutilíssimas discussões. Mas na linguagem do dia-a-dia operamos facilmente com esses conceitos.
Para que se fale em causa há que haver dois eventos, um dos quais depende diretamente da ação do outro: A porque B. Se eu digo que "as ruas estão molhadas porque choveu", estou afirmando que o evento "ruas molhadas" se deve ao evento "ter chovido". Assim, "porque choveu" se classifica como oração subordinada adverbial causal.
Se, porém, eu disser "deve ter chovido, pois as ruas estão molhadas", não se poderá falar de causa, já que existe um único fato. "Deve ter chovido" não é um fato; é suposição, é hipótese. O único fato é "as ruas estão molhadas", e esse fato é apresentado para justificar a enunciação "deve ter chovido". É como se eu estivesse respondendo à pergunta: que argumento você tem para dizer que deve ter chovido?
Normalmente se usa a conjunção porque para introduzir uma causal, e a conjunção pois, precedida de vírgula, para introduzir uma coordenada explicativa. Mas é preciso cuidado. Se eu dissesse "Deve ter chovido, porque as ruas estão molhadas", a segunda oração, embora iniciada pelo porque, continuaria a ser coordenada explicativa. Por quê? Porque estaria justificando a enunciação de uma hipótese, e não dando a causa de um evento enunciado.
Como se vê, o importante não é tanto a conjunção que se usa. O importante é o tipo de relação de sentido que se estabelece entre as duas orações.


Odilon Soares Leme é professor do Anglo, responsável pela vinheta "S.O.S. Língua Portuguesa" da rádio Jovem Pan e autor de "Tirando Dúvidas de Português" e de "Linguagem, Literatura, Redação" (Editora Ática)


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