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RODAPÉ
O campeonato da perversidade
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Até poucos anos atrás, uma
das características que distinguiam a prosa e a poesia brasileiras era sua relação distinta com
nossa tradição literária. Os poetas
nunca conseguiram se desvencilhar do diálogo cerrado com as diferentes linhas de força do modernismo. Já na prosa, não existia entre nossos romancistas e contistas
uma dicção coesa e incontornável
para os novos autores. Durante
muito tempo, isso foi responsável
pela grande heterogeneidade e
pela dificuldade de encontrar traços estilísticos comuns em autores como Bernardo Carvalho,
Milton Hatoum ou Cristovão
Tezza.
Recentemente, essa falta de
preocupação com uma identidade literária "nacional" acabou gerando seu contrário: uma corrente homogeneamente voltada para
o presente, para as falhas que percorrem o tecido social brasileiro,
para um cotidiano marcado por
violência e degradação.
Há uma evidente afinidade entre os escritores que representam
essa renovação, como Fernando
Bonassi, Marcelo Mirisola, Marçal Aquino e André Sant'Anna.
São autores essencialmente urbanos, retratando uma realidade devastada pelo terror econômico,
impregnada pelos ícones midiáticos e por linguagens estereotipadas (o jargão policial, a gíria belicosa da periferia).
O surgimento dessa geração
arejou a literatura brasileira, sintonizou-a com o cenário das ruas
e das telas de TV. Mas, como é frequente em um tempo em que toda vivência tende a entrar numa
esfera de reprodução incontrolável, não demorou que surgisse
uma literatura de epígonos. O termo pode ter conotação ligeiramente pejorativa, mas a literatura
dos novíssimos prosadores, ao assumir a tarefa de consolidar essa
tendência, corre o risco de transformar metonímias da obscenidade social vigente em repetições
esvaziadas de sentido crítico.
A cada mês surge uma avalanche de livros que disputam entre
si uma espécie de campeonato da
perversidade, com histórias e personagens que procuram avançar
cada vez mais no território do
grotesco, do pornográfico. O próprio surgimento de uma editora
chamada Livros do Mal (em Porto Alegre) vale como programa
estético de uma geração.
Três livros recentes poderiam
dar um panorama desse quadro.
"Ou Clavículas", de Cristiano Baldi (Livros do Mal, tel. 0/xx/51/
3248-4637), é uma sucessão de cenas de sexo e masturbação, de
personagens cujas fantasias começam como pequenas promessas de redenção e terminam sempre em uma espécie de melancolia
pós-coito.
"Morte Porca", do mineiro Wir
Caetano (Selo Zero, tel. 0/xx/31/
9635-3209), é um livro cujo projeto visual remete à estética do grafite e cujos minicontos lembram
rabiscos de banheiros públicos:
epifanias na privada; orgasmos e
entranhas; "a poesia, a diarréia e a
morte"", como ele escreve em "A
Vida É Fria, o Inferno É Mais".
A mesma propensão escatológica domina "O Cheiro do Ralo", de
Lourenço Mutarelli. Como é recorrente na nova prosa brasileira,
temos um narrador anônimo que
fala de obsessões sexuais em frases taquigráficas. Mas, aqui, a fixação na bunda de uma garçonete
e o odor fétido que exala de um
ralo acabam estruturando a narrativa entre os registros do baixo e
do sublime. Por isso o protagonista (dono de uma loja de compra e
venda de quinquilharias) compara seu objeto de desejo a "Rosebud", o objeto de investimento
afetivo que desencadeia a narrativa do filme "Cidadão Kane", de
Orson Welles.
Mas também poderíamos dizer
que a bunda da garçonete (pela
qual o narrador tem um apetite
apenas voyeurístico) é como o
"Aleph" criado pelo escritor argentino Jorge Luis Borges: um
ponto de onde se pode contemplar o mundo. No caso de Mutarelli, cujo livro dá novo fôlego a
sua geração, uma contemplação
quase assexuada do sexo, um idílio pornográfico que procura superar a pornografia da existência.
O Cheiro do Ralo
Autor: Lourenço Mutarelli
Editora: Devir (tel. 0/xx/11/3347-5700)
Quanto: R$ 19,50 (144 págs.)
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