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São Paulo, sábado, 01 de março de 2003

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RODAPÉ

O campeonato da perversidade

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Até poucos anos atrás, uma das características que distinguiam a prosa e a poesia brasileiras era sua relação distinta com nossa tradição literária. Os poetas nunca conseguiram se desvencilhar do diálogo cerrado com as diferentes linhas de força do modernismo. Já na prosa, não existia entre nossos romancistas e contistas uma dicção coesa e incontornável para os novos autores. Durante muito tempo, isso foi responsável pela grande heterogeneidade e pela dificuldade de encontrar traços estilísticos comuns em autores como Bernardo Carvalho, Milton Hatoum ou Cristovão Tezza.
Recentemente, essa falta de preocupação com uma identidade literária "nacional" acabou gerando seu contrário: uma corrente homogeneamente voltada para o presente, para as falhas que percorrem o tecido social brasileiro, para um cotidiano marcado por violência e degradação.
Há uma evidente afinidade entre os escritores que representam essa renovação, como Fernando Bonassi, Marcelo Mirisola, Marçal Aquino e André Sant'Anna. São autores essencialmente urbanos, retratando uma realidade devastada pelo terror econômico, impregnada pelos ícones midiáticos e por linguagens estereotipadas (o jargão policial, a gíria belicosa da periferia).
O surgimento dessa geração arejou a literatura brasileira, sintonizou-a com o cenário das ruas e das telas de TV. Mas, como é frequente em um tempo em que toda vivência tende a entrar numa esfera de reprodução incontrolável, não demorou que surgisse uma literatura de epígonos. O termo pode ter conotação ligeiramente pejorativa, mas a literatura dos novíssimos prosadores, ao assumir a tarefa de consolidar essa tendência, corre o risco de transformar metonímias da obscenidade social vigente em repetições esvaziadas de sentido crítico.
A cada mês surge uma avalanche de livros que disputam entre si uma espécie de campeonato da perversidade, com histórias e personagens que procuram avançar cada vez mais no território do grotesco, do pornográfico. O próprio surgimento de uma editora chamada Livros do Mal (em Porto Alegre) vale como programa estético de uma geração.
Três livros recentes poderiam dar um panorama desse quadro. "Ou Clavículas", de Cristiano Baldi (Livros do Mal, tel. 0/xx/51/ 3248-4637), é uma sucessão de cenas de sexo e masturbação, de personagens cujas fantasias começam como pequenas promessas de redenção e terminam sempre em uma espécie de melancolia pós-coito.
"Morte Porca", do mineiro Wir Caetano (Selo Zero, tel. 0/xx/31/ 9635-3209), é um livro cujo projeto visual remete à estética do grafite e cujos minicontos lembram rabiscos de banheiros públicos: epifanias na privada; orgasmos e entranhas; "a poesia, a diarréia e a morte"", como ele escreve em "A Vida É Fria, o Inferno É Mais".
A mesma propensão escatológica domina "O Cheiro do Ralo", de Lourenço Mutarelli. Como é recorrente na nova prosa brasileira, temos um narrador anônimo que fala de obsessões sexuais em frases taquigráficas. Mas, aqui, a fixação na bunda de uma garçonete e o odor fétido que exala de um ralo acabam estruturando a narrativa entre os registros do baixo e do sublime. Por isso o protagonista (dono de uma loja de compra e venda de quinquilharias) compara seu objeto de desejo a "Rosebud", o objeto de investimento afetivo que desencadeia a narrativa do filme "Cidadão Kane", de Orson Welles.
Mas também poderíamos dizer que a bunda da garçonete (pela qual o narrador tem um apetite apenas voyeurístico) é como o "Aleph" criado pelo escritor argentino Jorge Luis Borges: um ponto de onde se pode contemplar o mundo. No caso de Mutarelli, cujo livro dá novo fôlego a sua geração, uma contemplação quase assexuada do sexo, um idílio pornográfico que procura superar a pornografia da existência.


O Cheiro do Ralo
    Autor: Lourenço Mutarelli Editora: Devir (tel. 0/xx/11/3347-5700) Quanto: R$ 19,50 (144 págs.)



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