São Paulo, quinta-feira, 01 de março de 2007

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NINA HORTA

Um tratado inverso

"Lichia? Ah, aquela jaquinha", suspira aliviada.a empregada de linguajar roseano

CONFUSÕES COM a pauta de hoje; tive que retirar do bestunto uma crônica em 15 minutos. Pensei em Veneza, cordeiros, o comportamento esquizofrênico mundial diante da comida, mas o melhor é o que está ao alcance da mão e dos olhos. A empregada de linguajar roseano.
Chegou aqui meio surda, e só agora percebo que era como se eu falasse alemão. Foi aprendendo devagarzinho, fingindo-se de surda mesmo, de uma paciência ímpar, e eu também, até que a palavras se ajustassem às coisas. "Lichia? Ah, aquela jaquinha", suspira ela aliviada.
O que acho mais interessante é a escolha de ingredientes e de recipientes. Explico. Se chego às seis horas do trabalho, sou surpreendida com a informação. "Cozinhei umas batatas para a senhora." "Batata, agora?" E lá vem ela com duas batatas-doces frias, enormes (e o pior é que eu como).
Às dez da noite, já entrou no quarto com uma panelinha de ferro tampada que fazia um barulho suspeito. Um ovo cozido duro com casca. O que já é um progresso diante da cumbuca de farofa. Só, farofa pura.
Aos poucos, o alemão gótico vai se transformando em pequenas realidades. Rúcula, azeite extravirgem, alcachofra (misericórdia, que trem de cardo é esse?). A picanha é feita na panela; o acém, em bifes; o lagarto, cortado no sentido do comprimento.
O monstro do microondas é evitado. O processador debaixo da pia e as coisas mais perigosas vão se acumulando na despensa com seus nomes alemães. Grão-de-bico, aveia, lentilhas, quinua (cruzes!).
Morre de saudade de casa. A filha menor não agüentou a barra. Fez a mala, enfiou-se durante dias num ônibus e ontem telefonou, empanturrada de umbu, feliz da vida. Promete que não vai chegar nem perto do açude fundo, mas tem se divertido nos caldeirões.
Aí, a coisa se inverte, sou eu quem não junta lé com cré. O que são caldeirões? São lajedos onde o pai bota muita lenha, acende fogueira e as pedras se soltam até ficar um buracão. Lá, a água da chuva se acumula, clarinha, serve para beber, fazer comida, tomar banho. A água do açude é meio vermelha de terra.
Às vezes, no fim de semana, me traz uns biscoitos que compra num mercado, de polvilho, duros, duros, mas já estou me viciando neles.
Tem um forte sentimento de família, tias, irmãs, primas, todos se amam de verdade -as mulheres submissas aos homens. Uma das filhas já se queixou comigo. "A senhora vê. Mãe é mó boazinha, e o pai e os meninos esperam ela no fim de semana, bravos, pra cozinhar, lavar e passar."
(Esse amor familiar aparece na conta do telefone; celulares espalhados de Norte a Sul, formando uma rede de solidariedade.) Adora novela, entende tudo, as louras do "Big Brother" são as galegas, e cozinha só nos intervalos.
Hoje resolvi chamá-la às falas. Vamos ver o que se come neste sítio do seu pai, e é o que quero aqui.
Ficamos combinadas. De manhã, cuscuz e biscoito chimango, café bem forte.
De almoço, arroz, feijão, um refogado de quiabo, abóbora e chuchu e, de vez em quando, carne salgada. Para sobremesa, melancia quando tem. De tarde, refresco de umbu, que é umbu com leite.
Sua comida de alma é carne de porco cozida desfiada e o caldo de cozimento misturado à farinha de milho. No tempo de milho, pamonha quase sem doce, que dá para sentir o sal, canjica, curau, bolo de milho verde.
"Antes, pai caçava veado, codorna, perdiz. Agora lá é proibido. E uma noite ele foi caçar um tatu, e cobra patrona mordeu ele, ficou ruim mesmo, só vendo."
E por que fico com ela? Ora, é mó boazinha. Quem precisa do Adrià em casa?


ninahorta@uol.com.br

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