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NINA HORTA
Um tratado inverso
"Lichia? Ah, aquela jaquinha", suspira aliviada.a empregada de linguajar roseano
CONFUSÕES COM a pauta de hoje; tive que retirar do bestunto uma crônica em 15 minutos. Pensei em Veneza, cordeiros, o
comportamento esquizofrênico
mundial diante da comida, mas o
melhor é o que está ao alcance da
mão e dos olhos. A empregada de
linguajar roseano.
Chegou aqui meio surda, e só agora percebo que era como se eu falasse alemão. Foi aprendendo devagarzinho, fingindo-se de surda mesmo,
de uma paciência ímpar, e eu também, até que a palavras se ajustassem às coisas. "Lichia? Ah, aquela jaquinha", suspira ela aliviada.
O que acho mais interessante é a
escolha de ingredientes e de recipientes. Explico. Se chego às seis horas do trabalho, sou surpreendida
com a informação. "Cozinhei umas
batatas para a senhora." "Batata,
agora?" E lá vem ela com duas batatas-doces frias, enormes (e o pior é
que eu como).
Às dez da noite, já entrou no quarto com uma panelinha de ferro tampada que fazia um barulho suspeito.
Um ovo cozido duro com casca. O
que já é um progresso diante da
cumbuca de farofa. Só, farofa pura.
Aos poucos, o alemão gótico vai se
transformando em pequenas realidades. Rúcula, azeite extravirgem,
alcachofra (misericórdia, que trem
de cardo é esse?). A picanha é feita
na panela; o acém, em bifes; o lagarto, cortado no sentido do comprimento.
O monstro do microondas é evitado. O processador debaixo da pia e
as coisas mais perigosas vão se acumulando na despensa com seus nomes alemães. Grão-de-bico, aveia,
lentilhas, quinua (cruzes!).
Morre de saudade de casa. A filha
menor não agüentou a barra. Fez a
mala, enfiou-se durante dias num
ônibus e ontem telefonou, empanturrada de umbu, feliz da vida. Promete que não vai chegar nem perto
do açude fundo, mas tem se divertido nos caldeirões.
Aí, a coisa se inverte, sou eu quem
não junta lé com cré. O que são caldeirões? São lajedos onde o pai bota
muita lenha, acende fogueira e as
pedras se soltam até ficar um buracão. Lá, a água da chuva se acumula,
clarinha, serve para beber, fazer comida, tomar banho. A água do açude
é meio vermelha de terra.
Às vezes, no fim de semana, me
traz uns biscoitos que compra num
mercado, de polvilho, duros, duros,
mas já estou me viciando neles.
Tem um forte sentimento de família, tias, irmãs, primas, todos se
amam de verdade -as mulheres
submissas aos homens. Uma das filhas já se queixou comigo. "A senhora vê. Mãe é mó boazinha, e o pai e os
meninos esperam ela no fim de semana, bravos, pra cozinhar, lavar e
passar."
(Esse amor familiar aparece na
conta do telefone; celulares espalhados de Norte a Sul, formando uma
rede de solidariedade.)
Adora novela, entende tudo, as
louras do "Big Brother" são as galegas, e cozinha só nos intervalos.
Hoje resolvi chamá-la às falas. Vamos ver o que se come neste sítio do
seu pai, e é o que quero aqui.
Ficamos combinadas. De manhã,
cuscuz e biscoito chimango, café
bem forte.
De almoço, arroz, feijão, um refogado de quiabo, abóbora e chuchu e,
de vez em quando, carne salgada.
Para sobremesa, melancia quando
tem. De tarde, refresco de umbu,
que é umbu com leite.
Sua comida de alma é carne de
porco cozida desfiada e o caldo de
cozimento misturado à farinha de
milho. No tempo de milho, pamonha quase sem doce, que dá para
sentir o sal, canjica, curau, bolo de
milho verde.
"Antes, pai caçava veado, codorna,
perdiz. Agora lá é proibido. E uma
noite ele foi caçar um tatu, e cobra
patrona mordeu ele, ficou ruim
mesmo, só vendo."
E por que fico com ela? Ora, é mó
boazinha. Quem precisa do Adrià
em casa?
ninahorta@uol.com.br
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