|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Uma crise pequena demais para nós dois
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Guimarães Rosa escreveu que
quem muito evita acaba convivendo. Fernando Henrique e
Itamar Franco estão unidos
desde quando começaram a
brigar. De manhã, devem ler as
declarações inamistosas, se é
que não as conhecem imediatamente, por meio da rede de
computadores ou pela televisão.
Há muitos anos, era de bom-tom na esquerda reduzir todos
os problemas às suas dimensões políticas, depurando-os de
qualquer vestígio subjetivo. A
seguir este método, o debate de
Itamar com Fernando Henrique seria reduzido de um lado
ao ajuste fiscal, necessário para
ganhar credibilidade dos investidores; de outro lado, ao
conjunto de leis que centralizaram recursos na esfera federal,
empobrecendo os Estados.
No entanto, o buraco é mais
embaixo. Vive-se um clima de
tensão, do gênero "esta cidade
é pequena demais para nós
dois". Impossível abordar o tema sem um aparato psicológico.
Mas também é impossível
sair por aí fazendo análises selvagens das pessoas.
Freud explicaria essa rivalidade continuada entre dois homens? Talvez. Um dos seus discípulos dissidentes, Adler, teria
condições de se sentir mais próximo da realidade, deslocando
o sexo e colocando em cena o
desejo do poder.
Nesse caso, a luta de Itamar e
Fernando Henrique vai continuar até 2002 e quem sabe se
prolongar depois disso.
A verdade é que tanto a política como a psicologia nos deixam desamparados diante desse fenômeno. Tudo parece seguir a inexorável lógica do
duelo final, quando um dos
dois cai ferido, e o outro, revólver fumegando na mão, comemora a vitória.
É um subenredo que invade a
trama da grande crise econômica que atinge o país. Depois
de ler quase tudo o que se escreveu sobre o tema, sinto-me ainda sem condições de explicá-lo
adequadamente.
Proponho apenas alguns fios
que podem nos embaralhar
mais ou desatar o nó. Itamar
sentiu-se humilhado na convenção do PMDB. Foi grosseiramente insultado, e Fernando
Henrique não se manifestou
decisivamente contra aqueles
métodos.
Mas poucos de nós se manifestaram, e isso representa um
erro do próprio processo político brasileiro. Sob pretexto de
não nos metermos em problemas partidários alheios, calamos diante de métodos condenáveis.
Mas isso não é uma pista definitiva. Vi uma frase atribuída
a Fernando Henrique que talvez seja mais significativa. Ele
dizia: "Se ficar em Juiz de Fora,
você ouvirá venenos contra
mim; será preciso vir toda semana para jantarmos em Brasília".
Se verdadeira, essa frase revela uma tendência do desencontro. Só um jantar semanal, em
que se passam em revista os pequenos ressentimentos, poderia evitar que a amizade se desintegrasse. No fundo, era um
reconhecimento de que alguma
coisa estava sempre prestes a
desandar.
Mas o quê? Sinto-me derrotado, voltando ao ponto de partida. Minha hipótese: Itamar e
Fernando Henrique participaram de um processo, hoje considerado histórico, do lançamento do Real. Fernando Henrique se elegeu presidente e
monopolizou a representação
do processo. Itamar não deve
ter gostado do papel que o presidente reservou para ele no
seu testemunho.
Se a hipótese tiver alguma validade, creio que uma nova
versão oficial do lançamento
da moeda não atenuaria o problema. A única saída seria uma
própria revisão histórica do
processo. Se, no futuro, ele se
tornar menos interessante do
que parece hoje, os dois poderão se reunir em torno de um
bom jantar e rir um pouco das
peças que a realidade costuma
pregar em nossos sonhos retumbantes.
Hoje, é preciso reconhecer,
ainda estão longe disso. Fernando Henrique tem certas dificuldades em admitir os pontos frágeis do Plano Real, Itamar revive uma luta anticolonial povoada pelos fantasmas
da Inconfidência.
Identificam-se com grandes
vultos da história e insultam-se
usando o nome de traidores célebres.
Quando se levarem um pouco
menos a sério, vão descer dessa
alegoria e cantar um novo
samba. O que os fará descer? É
preciso um acontecimento importante pelo menos na vida de
um dos dois. Acabei descrevendo um contexto em que só a ficção pode nos salvar.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|