São Paulo, segunda, 1 de março de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma crise pequena demais para nós dois

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Guimarães Rosa escreveu que quem muito evita acaba convivendo. Fernando Henrique e Itamar Franco estão unidos desde quando começaram a brigar. De manhã, devem ler as declarações inamistosas, se é que não as conhecem imediatamente, por meio da rede de computadores ou pela televisão.
Há muitos anos, era de bom-tom na esquerda reduzir todos os problemas às suas dimensões políticas, depurando-os de qualquer vestígio subjetivo. A seguir este método, o debate de Itamar com Fernando Henrique seria reduzido de um lado ao ajuste fiscal, necessário para ganhar credibilidade dos investidores; de outro lado, ao conjunto de leis que centralizaram recursos na esfera federal, empobrecendo os Estados.
No entanto, o buraco é mais embaixo. Vive-se um clima de tensão, do gênero "esta cidade é pequena demais para nós dois". Impossível abordar o tema sem um aparato psicológico.
Mas também é impossível sair por aí fazendo análises selvagens das pessoas.
Freud explicaria essa rivalidade continuada entre dois homens? Talvez. Um dos seus discípulos dissidentes, Adler, teria condições de se sentir mais próximo da realidade, deslocando o sexo e colocando em cena o desejo do poder.
Nesse caso, a luta de Itamar e Fernando Henrique vai continuar até 2002 e quem sabe se prolongar depois disso.
A verdade é que tanto a política como a psicologia nos deixam desamparados diante desse fenômeno. Tudo parece seguir a inexorável lógica do duelo final, quando um dos dois cai ferido, e o outro, revólver fumegando na mão, comemora a vitória.
É um subenredo que invade a trama da grande crise econômica que atinge o país. Depois de ler quase tudo o que se escreveu sobre o tema, sinto-me ainda sem condições de explicá-lo adequadamente.
Proponho apenas alguns fios que podem nos embaralhar mais ou desatar o nó. Itamar sentiu-se humilhado na convenção do PMDB. Foi grosseiramente insultado, e Fernando Henrique não se manifestou decisivamente contra aqueles métodos.
Mas poucos de nós se manifestaram, e isso representa um erro do próprio processo político brasileiro. Sob pretexto de não nos metermos em problemas partidários alheios, calamos diante de métodos condenáveis.
Mas isso não é uma pista definitiva. Vi uma frase atribuída a Fernando Henrique que talvez seja mais significativa. Ele dizia: "Se ficar em Juiz de Fora, você ouvirá venenos contra mim; será preciso vir toda semana para jantarmos em Brasília".
Se verdadeira, essa frase revela uma tendência do desencontro. Só um jantar semanal, em que se passam em revista os pequenos ressentimentos, poderia evitar que a amizade se desintegrasse. No fundo, era um reconhecimento de que alguma coisa estava sempre prestes a desandar.
Mas o quê? Sinto-me derrotado, voltando ao ponto de partida. Minha hipótese: Itamar e Fernando Henrique participaram de um processo, hoje considerado histórico, do lançamento do Real. Fernando Henrique se elegeu presidente e monopolizou a representação do processo. Itamar não deve ter gostado do papel que o presidente reservou para ele no seu testemunho.
Se a hipótese tiver alguma validade, creio que uma nova versão oficial do lançamento da moeda não atenuaria o problema. A única saída seria uma própria revisão histórica do processo. Se, no futuro, ele se tornar menos interessante do que parece hoje, os dois poderão se reunir em torno de um bom jantar e rir um pouco das peças que a realidade costuma pregar em nossos sonhos retumbantes.
Hoje, é preciso reconhecer, ainda estão longe disso. Fernando Henrique tem certas dificuldades em admitir os pontos frágeis do Plano Real, Itamar revive uma luta anticolonial povoada pelos fantasmas da Inconfidência.
Identificam-se com grandes vultos da história e insultam-se usando o nome de traidores célebres.
Quando se levarem um pouco menos a sério, vão descer dessa alegoria e cantar um novo samba. O que os fará descer? É preciso um acontecimento importante pelo menos na vida de um dos dois. Acabei descrevendo um contexto em que só a ficção pode nos salvar.




Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.