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LITERATURA/ANÁLISE
Ao escritor, as batatas
LUIZ RUFFATO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Estamos às vésperas de dois
dos maiores acontecimentos
da vida literária brasileira: a entrega e o início do processo de seleção, respectivamente, dos prêmios mais prestigiosos, o Jabuti e
o Portugal Telecom. Este, em sua
segunda edição, aquele na 46ª.
Um bom momento, pois, para
uma reflexão.
Comecemos pelo Portugal Telecom, que distribui um total de R$
150 mil. Há vários aspectos louváveis na organização desse prêmio,
além do montante envolvido.
Um deles, sem dúvida, é a transparência na seleção dos finalistas.
Grosso modo, funciona assim:
600 convidados, entre críticos literários e professores universitários, de todas as regiões do país,
indicam os cinco melhores livros
do ano anterior e apontam 15 nomes que, junto com cinco previamente escolhidos (a comissão artística) formam o júri nacional,
composto, portanto, por 20 membros. Nenhum outro concurso do
Brasil tem tamanha preocupação
com a lisura do processo.
Em outros aspectos, no entanto,
há problemas. Os organizadores,
visando democratizar e universalizar as oportunidades, põem no
mesmo cesto para análise do júri
categorias de "criação literária"
tão díspares como romances,
contos, crônicas, poesias e dramaturgia. Como julgar se uma peça de teatro, com suas especificidades, é melhor que um romance
ou uma coletânea de contos, se
cada um desses gêneros traz em si
sua própria problematização? Seria comparar qualidade, numa
feira livre, de limões com peixes...
Outro ponto a ser questionado é
a lista de livros que a organização
oferece como referência da produção literária em 2003.
O regulamento reza que podem
ser indicados apenas três títulos
de "autores brasileiros, com obras
publicadas em primeira edição no
Brasil, no período entre 1º de janeiro e 31 de dezembro de 2003",
sendo expressamente vetados,
entre outros, "livros, cujos textos
tenham sido publicados anteriormente ao ano em análise, no todo
ou em parte, em livro de autoria
do próprio autor".
Ora, num exame superficial da
listagem, emergem títulos que
nunca poderiam ali se encontrar.
Por exemplo: os da coleção "Melhores Poemas", "Melhores Contos" e "Melhor Teatro", da Global,
e "Poesia Reunida", de Alexei
Bueno, todos por razões óbvias.
"James Lins", de Mário Prata, e o
clássico "O Tronco", de Bernardo
Élis, publicados, respectivamente,
em 1994 e 1956. "A Família Agulha", de Luís Guimarães Jr., e "Caramuru", de Santa Rita Durão,
importantes reedições dos originais de 1870 e 1781. E todos os livros da iEditora, se tomarmos o
verbo "publicar" em seu significado até aqui consagrado de "levar
ao conhecimento do público",
por serem livros eletrônicos.
Por fim, a Portugal Telecom
inovou ao transformar a entrega
do prêmio em jogada de marketing. A festa do ano passado literalmente estendeu um tapete vermelho para a chegada à Sala São
Paulo, que ficou lotada de atores,
modelos, publicitários, alpinistas
sociais e até mesmo escritores.
No palco, o público foi brindado com um esdrúxulo sistema de
pontuação, decalcado das apurações de escolas de samba. No Carnaval, esse mecanismo é justificável, já que se trata deliberadamente de uma espetacularização do
evento. Mas impor o mesmo a
uma manifestação cultural...
E foi justamente a carnavalização que parece ter perseguido a
CBL (Câmara Brasileira do Livro)
para a edição deste ano do Prêmio
Jabuti. Buscando a "objetividade", foram criados critérios de
avaliação para cada um dos gêneros em julgamento (são 17 concorrentes, além do Livro do Ano
de ficção e o de não-ficção), compostos por quesitos que devem
ser analisados pelo jurado para
compor uma nota. Esse critério,
no entanto, oferece armadilhas
terríveis contra o escritor. Vejamos: nove quesitos compõem a
nota do gênero romance. Para obter o escore máximo, o romance
deve seguir uma receita, que inclui itens como "história individual dentro de um contexto coletivo", "é preciso que o(s) protagonista(s) se moldem durante o
conflito, dele emergindo com a
experiência advinda da crise";
"ação + história + transformação
devem estar presentes, amalgamadas na narrativa" etc. etc. etc.
Ou seja, estabeleceram-se "fórmulas" para a construção do romance... E fórmulas calcadas no
gênero tal como era no século 19...
Na categoria "contos e crônicas" (que a CBL insiste em colocar
sob o mesmo guarda-chuva), os
critérios (oito, em que todos se referem apenas à criação de uma
fôrma para o conto) envolvem
afirmações como "o conto é uma
corrida contra o relógio", "nada
deve haver de supérfluo", "algum
filão oculto deve aflorar à superfície nos interstícios e no fim do
conto". Tchecov, coitado, não teria a mínima chance...
No âmbito da poesia, um se destaca: "as estratégias de leitura podem variar conforme o leitor. A
obra de arte está aberta a "n" interpretações, mas há as mais apropriadas, as menos produtivas e as
não apropriadas". Bingo!
Ah, para não falar ainda do valor do prêmio: R$ 1.000 (isso mesmo!) "deduzidos os encargos legais". Sem comentários.
Luiz Ruffato é escritor, autor de "Eles
Eram Muitos Cavalos (Boitempo, 2001)
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