São Paulo, quinta-feira, 01 de abril de 2004

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TEATRO

Grupo mineiro apresenta em SP "O Inspetor Geral", clássico do autor russo que espelha a corrupção no poder público

Galpão usa Gógol para rir de maus costumes

VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Nascido e criado em Belo Horizonte, o grupo Galpão, 21, zelou pelo distanciamento, esquivou-se de transpor a ação para as alterosas, tendência natural em seus espetáculos, e fixou-a lá na Rússia do início do século 19, como manda o original, mas não teve jeito.
O que vai pela peça "O Inspetor Geral", de Nicolai Vassilievitch Gógol (1809-52), é o que salta das páginas de qualquer jornal de hoje: a corrupção nos mais variados graus do poder.
"Não culpes o espelho por tua cara retorcida", tascou Gógol na epígrafe da sua primeira peça, de 1836, citando o ditado popular.
"O Inspetor Geral" estréia hoje, para convidados, no teatro do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, após apresentações em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Goiânia e Paraná.
Diretor convidado do Galpão, o ator Paulo José, 67, como que equalizou sua encenação entre as sonoridades de duas palavras "primas": o substantivo inspetor e o adjetivo impostor.
Para além do "propinoduto", como diz José, o clássico de Gógol descortina a impostura tanto da classe dirigente quanto daqueles que compactuam o embuste.
A peça conta como o governo, familiares, administradores de confiança e até o juiz de uma cidade interiorana da Rússia entram em pânico com o anúncio da chegada de um funcionário federal encarregado de fiscalizar as contas do erário.
Consciências transtornadas, os corruptos agem por impulso e elegem, de chofre, o primeiro forasteiro que se hospeda no hotel da cidade, quiçá, a serviço de uma missão secreta.
O suposto, de nome Khlestakov, é apenas um funcionário pé-rapado, que acaba de perder seu pouco dinheiro no jogo e, claro, vai endossar aqueles paparicos de quem o toma por autoridade máxima. Até a filha do governador lhe cai nos braços.
Desfrutado o bem-bom, Khlestakov se retira de cena antes de cair a máscara. Ou a casa. Uma carta sua é interceptada e, nela, zomba de todos. A peça termina, agora sim, com a chegada do inspetor, que deverá encontrar terreno fértil para seu trabalho.
A essa espécie de comédia de erros, Paulo José incorporou estudos sobre a loucura. Buscou autores como Peter Weiss ("Marat/Sade"), Machado de Assis ("O Alienista") e, inclusive, o cineasta Nelson Pereira dos Santos ("Azyllo muito Louco", 1970).
A dramaturgia adaptada de Cacá Brandão cotejou traduções em inglês, francês, espanhol e português e foi consolidada na sala de ensaios.
Paulo José encontrou o Galpão, e vice-versa, há cinco anos. O ator e a mulher, a cineasta Kika Lopes, começaram a coletar imagens das turnês do grupo para um documentário que ainda não tem previsão de lançamento. Na parceria com o Galpão, que desenvolveu uma sofisticada linguagem de teatro popular (por mais que a expressão tenha sido desvirtuada nos últimos tempos), o diretor sublima a musicalidade inerente ao trabalho de ator.
Há sempre disponibilidade para tocar, cantar, o que foi devidamente lapidado nas últimas montagens pela trinca Babaya (preparação vocal), Fernando Muzzi (instrumental) e Ernani Maletta (regência de coro).
Os números musicais atravessam vários momentos de "O Inspetor Geral". Na abertura, por exemplo, os atores adentram o palco todos com indumentária branca, típica dos povos turcos, cantarolando em russo ou tocando trombone, sax, teclados etc.
Soam com a harmonia crítica das sátiras que fazem rir das coisas más, como queria Gógol.
Uma "comédia com travo de amargura ou uma crítica aos (maus) costumes de nosso tempo", como assina o Galpão no material distribuído à imprensa.


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